Em videobiografia, feminista radical americana compara casamento ao câncer
Paulo Sampaio
15/04/2019 05h00
Lá pelo meio da conversa com a videomaker Rita Moreira, 74 anos, ela se apresenta: "Sou lésbica, feminista radical e de esquerda". Não que fosse preciso dizer. Àquela altura, Moreira já havia exibido para o blog seu vídeo mais recente, uma "biografia de ideias" da ativista norte-americana Ti-Grace Atkinson, 80 anos, que foi fortemente influenciada pela filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) e ficou conhecida como uma das pioneiras do lendário Women's Movement, criado no início dos anos 1970.
Simone de Beauvoir é considerada um ícone do feminismo contemporâneo. Seu livro "O Segundo Sexo" (1949) tornou-se um clássico sobre a opressão às mulheres. Companheira indissociável do filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980), com quem manteve um relacionamento aberto durante a vida toda, ela partilhava com ele da filosofia existencialista, cuja base são experiências humanas concretas, digamos, prosaicas, e não apenas elaborações do sujeito pensante.
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Lesbianismo não genital
Entre as ideias radicais pregadas por Ti-Grace Atkinson, estão a analogia entre "feminismo radical" e "lesbianismo político" (forma de relacionamento que não está associada à genital, mas sim à união visceral de mulheres pela mesma causa); o "separatismo" ("as mulheres devem se unir sem a presença do homem, para se definirem através de si, e usarem a raiva para ir adiante"); e, ultimamente, a convicção de que as trans não devem participar de manifestações feministas, "já que a questão de gênero não diz respeito ao movimento e sim aos direitos humanos".
Atkinson, à esquerda, e um grupo de feministas radicais: "Olha que lindinha!" (Foto: Reprodução)
Olha que lindinha!
Rita Moreira conhece Atkinson desde o começo dos anos 1970, quando morou em Nova York com a então companheira na vida pessoal e profissional, Norma Bahia Pontes. Fã incondicional da filósofa, mantém em casa diversas fotografias emolduradas dela. "Olha que lindinha! A Ti é a da esquerda", aponta a videomaker, quando a imagem de quatro feministas radicais aparece na tela.
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Moreira afirma que tudo o que ela pensa está na videobiografia de Atkinson. E faz suas as palavras dela. "Os trans, os negros e os homens não têm nada que ficar tirando lasquinha das nossas passeatas. A gente não vai na deles!" Ela não se conforma com as consequências que o debate sobre as questões de gênero trouxeram para as mulheres cis (cujo gênero é o mesmo designado biologicamente): "Agora, a gente tem tido que explicar que somos mulheres nascidas mulheres. É o cúmulo! Só existem dois sexos: o ser humano nasce com um pinto ou uma xoxota. Aí, dizem que a gente é contra trans!"
Rita Moreira com Norma Pontes Bahia, companheira dos tempos em que morou em Nova York (Foto: Reprodução)
Nem mulher nem homem
Apesar de atrair uma legião de fãs, Atkinson não era lésbica nem tampouco manteve relacionamentos com homens — o que só aumentava o mistério em torno dela. "Mistério, não!", exalta-se Rita. Então ela era assexuada? Mais gritos. "Isso não vinha ao caso! Ela considerava as instituições como o casamento, a maternidade e a religião os fundamentos da opressão da mulher." Mas não podia nem transar? "Você não entendeu nada!", continua Rita.
Nas entrevistas do filme, Atkinson aparece usando óculos redondos com lentes acinzentadas, à francesa, ou muito grandes, de armação transparente. Mantém uma postura de intelectual séria, ri pouquíssimo e pensa muito antes de soltar elaborações como: "Só porque você está viva, não significa que você tem uma vida." Onde quer que ela fosse, sempre havia uma câmera para captar sua imagem: ora esbravejando com policiais em uma marcha política, ora falando a feministas embevecidas, ou simplesmente atravessando uma rua com uma legenda. "Ela detestou esse cabelo", lembra Moreira, em uma das entrevistas do vídeo.
Três momentos de Atkinson: em manifestação pelo impeachment do presidente Richard Nixon; em entrevista recente; e em outra, no começo dos anos 1970 (Foto: Reprodução)
Quem tem ódio de quem
Na esteira do discurso de Atkinson, Rita Moreira afirma: "As pessoas costumam dizer que as feministas radicais têm ódio de homens. Mas pega as estatísticas de violência doméstica, e vê quem odeia quem. Só em janeiro, foram 117 mulheres mortas por companheiros no Brasil." Comento, sem números, que possivelmente os homens que batem em mulheres não são a maioria. Ela: "Claro que há homens bons. Deve haver até muçulmano legal…"
Ainda assim, Moreira acredita que as mulheres são mais "valentes". "Desço aqui na (avenida) Paulista, para observar o movimento de manhã cedo, vejo que elas já estão com as banquinhas armadas vendendo café, enquanto os homens estão largados pelo chão."
Padrão contrarrevolucionário
A octagenária Ti-Grace, que chegou a comparar o casamento à escravidão e que, quando perguntaram qual seria o possível substituto, respondeu "o câncer", lamenta profundamente que o atual movimento gay tenha adotado a instituição. "As feministas dos anos 70 não cairiam nisso. Hoje, elas acham que se juntar ao que é aceitável pela sociedade é a resposta. Por isso que eu digo que o sentimento precisa ser muito bem analisado, caso contrário pode reproduzir um padrão antigo, contrarrevoluncionário."
Em relação ao casamento heterossexual, especialmente no Brasil, ele se tornaria inviável por causa da violência doméstica. Moreira, que foi casada (ou morou junto) com algumas mulheres, pergunta: "Como pode, com esse feminicídio, ainda haver tanta mulher querendo se casar?"
Incrível retrocesso
Sobre as mulheres e o feminismo que se pratica atualmente, Atkinson afirma que, "fora pouquíssimos avanços que podem ser retirados (como a eventual liberação do aborto)" vivemos um período de incrível retrocesso. "Voltamos aos anos 1930", diz. "Nos tornamos coniventes com o subjugo, em parte para sobreviver. Ver-nos diminuídas permanentemente é intolerável. Por outro lado, acho o movimento #metoo interessante, mas não busca respostas profundas." Iniciado em 2017 pela ativista norte-americana Tarana Burke, o #metoo levou mulheres do mundo todo a declarar publicamente que sofreram assédio sexual.
Quanto ao Brasil, ela reconhece que diante da situação política, em que se apresenta um presidente ultraconservador, homofóbico e sexista, as mulheres não têm saída a não ser conceder, enfim, a presença de outros grupos em suas manifestações. "Além do feminismo, existe uma questão política séria a ser tratada. As duas se misturam."
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.