""Mostra as teta, amiga!". Concurso de drag queen elege "princesas"
Paulo Sampaio
18/06/2019 09h00
Antônia Pethit com a mãe, Cida; as princesas, Drag Verona e Leandra Gitana (de lilás); e a apresentadora Tchaka (Foto: André Giorgi/UOL)
Rodeado por decanas do transformismo, o ator Gustavo Zanela, 26 anos, finalizou no camarim a produção do personagem criado há apenas nove meses e que se tornaria no fim daquela noite o vencedor de um concurso de drag queens realizado no domingo no Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, na zona norte de São Paulo. "Eu me senti meio intimidada de estar ali no meio de gente com tanta experiência", disse Antonia Pethit, depois de receber a coroa, a faixa de rainha e R$ 1 mil. Ainda como prêmio, ela desfilará no carro oficial da Parada do Orgulho LGBTQI+, que sai da Avenida Paulista no domingo (23), e fará show na 'Feirinha da Diversidade', amanhã, na Praça da República.
No Drag Contest, Antonia Pethit contou com uma mini-torcida composta pela mãe, o namorado e a "sogra". O nome da personagem é uma homenagem ao pai dela, Antônio, morto quando Gustavo ainda era criança; e o "sobrenome", uma referência a seu status de caçula da família. Ele tem tem dois irmãos homens, mais velhos, que encaram sua orientação sexual "numa boa"."Claro que sofri bullying na escola, mas praticava também. Ninguém me fazia de besta, não", diz Antônia, piscando os olhos com dois cílios 301 (o maior do mercado) em cada. Ela está em cima de um scarpin vermelho de verniz, com 15 cm de salto agulha.
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O ator conta que sua intenção era fazer uma homenagem às cores do arco-íris, símbolo da causa LGBTQI+, "mas não queria simplesmente entrar enrolada na bandeira ou pintada com listras". Então, decidiu borrar a pele do corpo todo com manchas de guache vermelho, cor de abóbora, amarelo, verde, azul e roxo. "Acrescentei o rosa para intrigar o povo", diz. Cantou "Born this Way", sucesso de Lady Gaga que ele considera o correspondente Millenium de I'll Survive, lançada por Gloria Gaynor em 1978 e tornada um hit gay.
O namorado, Lucas, ajuda no acabamento da personagem de Antônia Pethit; à dir., ela recebe os aplausos, ao lado da mãe, Cida (Foto: André Giorgi/UOL)
Palestra motivacional
"Ela é um espetáculo, gente, muitos aplausos para Antônia Pethit!", grita a apresentadora Tchaka, 50, que usa um vestido amarelo bordado, corselet no mesmo tom e barbatana de tule; peruca alta, óculos com grossas armações pretas e detalhes em strass, quatro meias-calças e sandália dourada pata de vaca. "O amarelo representa o mundo das drags, provoca, instiga, compartilha e perpetua!", acredita Tchaka, que se considera "uma mistura de Consuelo Leandro e Zezé Macedo".
Formado em direito nos anos 1990, Valdir Bastos conta que, desde que criou Tchaka, há 20 anos, já apresentou 4 mil eventos. "Faço desde palestra motivacional em empresa, até animação em casamento de judeu na Hebraica." Ele explica que seu nome artístico é uma referência ao personagem do seriado "Elo Perdido", dos anos 1980: "Na primeira vez em que me montei, no Réveillon do ano 2000, eu fiquei tão feia que meus amigos disseram que eu parecia o macaquinho Tchaka. E você sabe, quanto mais a gente não gosta dos apelidos, mais eles grudam."
No camarim, em linha de montagem, da esq. para a dir., Brunessa Lopez, Drag Verona, Lavínia Storm e Antonia Pethit (Foto: André Giorgi/UOL)
Do indiano ao burlesco
Em sua 12a. edição, o Drag Contest apresentou 15 candidatos e, pela primeira vez, uma candidata. "Se eles abriram espaço para mim, vou peitar. O que mais me atrai é justamente a diversidade", diz a vendedora Elis Pessotti, 41, que é solteira, dona de dois cachorros vira latas e de um repertório que vai do africano ao indiano, passando pelo burlesco — performance que une o caricato, o ridículo, o cômico, e quase sempre termina com um striptease.
"Mostra as teta, amiga!", grita alguém no camarim cheio. Elis sorri, entre encabulada e absorta, e diz a título de legenda que seu orixá é Ogum. "Representa a lindeza, a doçura, o feminino, o espelho."
Primeira mulher a participar do Drag Contest, Elis Pessotti apresentou um show que misturava dança indiana, música africana ("da cantora Larissa Luz, que fala de todos os orixás, do índio, do caboclo") e performance burlesca (Foto: André Giorgi/UOL)
Elza Soares e Lady Gaga
O visagista Claudinei Hidalgo, 47 , produtor do concurso há nove anos, explica que "não existe mais definição de gênero para quem quer ser drag queen". "Durante um tempo houve essa ideia de que a drag tinha que ter uma roupa espalhafatosa, bater cabelo e se apresentar como uma diva americana. Hoje, a maioria mistura ritmos, canta MPB, samba, dubla Elza Soares, Larissa Luz, Lady Gaga, Madonna, e também Gloria Gaynor. A única coisa que se espera de uma boa candidata é que ela seja caricata, divertida, cause impacto nas pessoas, estranhamento e, ao mesmo tempo, as deixe fascinadas. É quase um palhaço gay."
Durante cerca de vinte anos, o próprio Claudinei se apresentou em boates gays como Fátima Fast-food. Ele conta com orgulho que o Drag Contest não é apenas uma apresentação amadorística de candidatos, mas um evento aculturador. Para participar, o interessado tem de participar de quatro oficinas — perucaria, cabelo e maquiagem; saúde e cidadania; dança; e consultoria com personalidades da noite.
1a. Drag do Brasil
Entre estas últimas estão pioneiras como Marcia Pantera, 49 anos, autointitulada primeira drag do Brasil. "Antes, elas eram chamadas de transformistas", diz.
E qual a diferença? "Nenhuma. É que eu fiz a passagem. Nessa transição, americanizou um pouco, entende?"
Ex-jogadora de vôlei, Marcia desfilou para o estilista Alexandre Herchcovitch e foi nove vezes campeã da versão gay da corrida de São Silvestre — conta que venceu, inclusive, subindo a Consolação de salto alto. Ela está no júri com mais três personalidades: o jornalista Chico Felitti, a atriz-drag-ativista Dani Glamourosa e a cantora Giselly Poppovic.
Um dos pontos altos da noite é a maneira como Márcia e todas as veteranas presentes ao concurso falam às drags mais novas. É sério, e por isso mesmo é muito engraçado. Elas encarnam divas octogenárias de Hollywood, falam do começo difícil de suas carreiras, da ascensão ao estrelato e do auge no exterior: "Gente, eu tive o Hercovitch, o Fernando Pires, tanta gente me deu a mão pra voar… ", diz Márcia, que mora na Alemanha. "Hoje, eu vejo uma rivalidade, uma competição que não havia. Essa coisa de correr atrás do sucesso imediato, gente, falta conteúdo. Não precisa passar por cima de ninguém. Quem dá o título é o público! O seu sucesso quem faz é ele!" A plateia, composta de cerca de cerca de 70 pessoas, a aplaude e grita seu nome.
As 16 concorrentes e a apresentadora (Foto: Andre Giorgi/UOL)
Segunda princesa
Eleita a "segunda princesa" da noite, Drag Verona diz que nunca contou com a mão obsequiosa de Alexandre Hercovitch, mas em compensação tem uma "mãe drag". Trata-se da artista Pretty Lupon, que apresentava shows em uma boate onde Verona trabalhou como bilheteira. "Foi ela que me deu força para tentar a carreira", conta. Hoje, sempre que seu acervo extrapola o espaço do guarda-roupa, Verona usa o armário de mãe drag.
Dentro de um macacão de strass coberto de pedrarias amarelas, ela se define como uma "drag de concurso". "Já ganhei 13. Só em Jaguariúna (cidade a 120 km de SP), fui bi-campeã", orgulha-se.
Vários candidatos entrevistados pelo blog também venceram concursos. No camarim, a Miss Gay Santo André 2018 conta que sua performance agora será inspirada na aeróbica dos anos 1990 e no pole dance. Angel, 19, está com um body nas cores verde e rosa cítricos, pronta para entrar em cena e ficar de cabeça para baixo na barra americana, ao som de I'm Gonna Rock You (Pussycat Dolls). "Minha mãe não gostou muito quando percebeu que eu era homossexual, mas hoje me ajuda a me montar."
Angel, 19, se vira no pole dance (Foto: André Giorgi/UOL)
Muito prazer
Paulo Sérgio Viana, 23, conta que sua família nunca havia visto Yasmin Carraroh ("o 'h' no fim é pra dar o close"), até que, na semana passada, ele recebeu o telefonema de um cliente que o chamou para animar uma festa dali a uma hora. "Eu não tinha onde me montar, teve de ser no meu quarto mesmo. Saí do armário literalmente. Sentei em frente ao espelho, comecei a me maquiar, minha mãe passada. No fim, meu pai disse: 'Ficou bonito, pode ir'. Foi gratificante."
Viana diz que sua carreira artística deslanchou quando ele participou do reality Academia de Drag, transmitido pelo Youtube. "Ali foi o meu boom." Apesar do sucesso, ele afirma que "a drag sofre preconceito dentro da própria comunidade LGBTQI+". Alguns pretendentes de Paulo Sérgio, quando descobrem que ele também é Yasmin, se afastam. Outros, perguntam: "Se a gente for ao cinema, você vai montado? Posso te levar na casa da minha mãe?" Paulo teve dois namorados, "um não aceitava a Yasmin, outro ficou em cima do muro".
Drag X-Men
Ali ao lado, enquanto se transforma em Lavínia Storm, Douglas Ramon de Mattos, 31, conta que a família evangélica dele rejeita sua orientação sexual, mas o marido, não. "Ele me assume com o maior orgulho: me beija, me abraça, me acompanha em todo lugar", diz Lavínia, cujo nome artístico "apareceu em um sonho". "Storm é uma homenagem ao X-Men, que eu amo."
Claudinei Hidalgo entra no camarim trazendo um saco plástico cheio de papeizinhos dobrados com os nomes das candidatas, para fazer o sorteio da ordem de entrada no palco. Cerca de duas horas depois, em novo momento de apreensão, Tchaka anuncia que houve um empate entre as duas princesas. Ela as submete ao veredito do público.
Lady Cigana
Drag Verona acaba perdendo em aplausos para a concorrente Leandra Gitana, 30 anos, 1,80m, 110kg. Gitana conta que é viúva, vive em São Mateus e que, além de todos os preconceitos previsíveis, ela ainda enfrenta a gordofobia: "As pessoas acham que a drag gorda tem de fazer a avacalhada, mas o meu estilo é clássico", afirma.
Parece que o público entendeu o recado. De cigana, sua dublagem de Born this Way dentro de um vestido de cetim lilás amplo, com uma saia rodada e bem explorada, foi um sucesso.
A primeira princesa Leandra Gitana roda a cigana, enquanto dubla Born this Way (Foto: André Giorgi/UOL)
Não resta dúvida de que se deve levar Leandra Gitana a sério, ainda que ela nos provoque com seu humor. Quando pergunto se ela pretende se submeter à transição de gênero, a princesa responde: "Não preciso. Sempre fui gordinha e tive peito, então dá pra fazer a garota."
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.