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Em futebol de gays contra héteros, juiz tendencioso é chamado de "Moro"

Paulo Sampaio

29/07/2019 04h30

Pose para a posteridade: Bees Cats, à esquerda, com a Mascote, Bárvara Pah, que faz as vezes de team leader avulsa; à direita, o time do Pop Bola (Foto: Lucíola Villela/UOL)

Lá pelo meio do segundo tempo, a professora de geografia Ana Elise, indignada com um "pênalti que não existiu",  explode contra o juiz: "Pelo amor de Deus, Sérgio Moro!" Ana Elise é mulher do vendedor Alan Paschoal, 31, técnico do time de jogadores gays BeesCats Soccer Boys. No sábado de manhã, eles jogaram contra um time de héteros, o Pop Bola, que, por sua vez, estreava em uma partida contra gays. A peleja de futebol 7 ocorreu em um clube da Pechincha, sub-região de Jacarepaguá, zona oeste do Rio. Os dois empataram: 5 a 5.

O jogo foi proposto pelo canal do youtube PopBola, que tem um time homônimo, representado ali pelo publicitário Alex Calheiros, 47. Ele explica que o canal, criado em 2002, é pioneiro em fazer uma abordagem do futebol com humor. Enquanto programa, passou pelas principais rádios do Rio ("menos a Tupi") e também pelo SporTV e Rede Record. "Migramos para a Internet há quatro anos. Temos seguidores orgânicos, um público passional, que nos acompanha por fidelidade. Ninguém paga. A gente é o patinho feio do jornalismo esportivo."

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Duelo de Extremos

A ideia da partida contra gays surgiu quando o Pop Bola transmitiu um jogo desimportante da Copa de 2018, Japão e Senegal, com foco no "duelo de extremos". "A gente brincou com o aspecto sexual", diverte-se Calheiros, aludindo à genitália dos orientais e a dos africanos. Durante a transmissão do jogo, eles receberam a ligação de um representante da Seleção Brasileira de Futebol de Anões (Brasa), propondo um jogo do time do canal contra o deles: "Foi ali que pensamos em um projeto de inclusão, com times de minorias. Mas mantemos a estrutura politicamente incorreta do programa. A gente diz que o Vini, craque da seleção dos anões, bebe pra ficar alto."

Vinicius ri quando se lembra que o Brasa perdeu de 6 a 4 para o Pop Bola. "Eles dividiram o jogo em três tempos de 20 minutos", conta. Além dos anões e dos gays, o projeto do canal esportivo já promoveu um jogo contra surdos e tem marcado outros dois, contra jogadores da terceira idade e mulheres.

Pênaltis escandalosos

O pontapé inicial do jogo de sábado foi dado pela mascote do BeesCats, Bárvara Pah, 40, que faz as vezes de team leader avulsa e usava uma sandália plataforma salto 15. O primeiro gol é do Pop Bola, mas, ao que tudo indica, o VAR foi ignorado: o juiz apitou um pênalti, o goleiro parou em sinal de acato, e então o atacante se aproveitou e marcou o gol.

Sim, Ana Elise tinha razão: segundo o próprio Calheiros, o juiz está autorizado a "torcer" pelo time deles. Os locutores informam que "o Pop Bola vai defender mais uma vez uma invencibilidade de 17 anos". "O árbitro é chamado por nós. Ele é nosso camisa 10. Marca pênaltis escandalosos a favor do time", explica o Calheiros. "O importante aqui é rir, e não ganhar. Mas o troféu vai sempre para o convidado."

Hétero, pai de família

Rindo muito, o árbitro Lenilton "Sérgio Moro" Rodrigues, 32, reconhece que só "entrou em campo" no segundo tempo, quando o BeesCats começou a levar gols. "É um jogo festivo, de confraternização. De todo jeito, estou aqui para cumprir as regras determinadas pelos organizadores (mais risos)", diz ele, que é amigo de Calheiros do tempo em que os dois estudaram no colégio Pedro II.

Rodrigues pensa alguns segundos para lembrar se tem algum amigo gay: "Tenho vizinhos. Mas vida que segue." Preocupado, responde a uma pergunta que não foi feita: "Sou hétero, casado, pai de dois filhos."

O atacante Marquinhos, expoente do BeesCats, cobra uma falta; ao fundo, o juiz "Moro"(Foto: Luciola Villela/UOL)

O técnico Barberato, do Pop Bola, admitiu que seu time estava muito aquém do adversário. "Isso é culpa dessa diretoria de merda! Pedi laterais, só mandaram atacantes!", gritava ele, de bermuda, paletó e chapéu. "O time deles (gays) está jogando mais solto. O nosso está com o rabo preso…"

De uma maneira geral, as piadas são de macho, digamos, ogro. Lopes e Araújo, responsáveis pela transmissão, batem um bolão: "Vão tocar o hino nacional? Vão: o Abba vai cantar YMCA"; outra: "O troféu Jorge Lafont (ator morto em 2003) é uma piroca gigante!" ; o Zagueiro Waguinho, vulgo "Zidane de Inhaúma", diz que no jogo contra os anões o adversário é inequívoco, por causa do tamanho; na partida contra surdos, idem, fácil saber: "E contra os gays? É uma situação esquisita. Pode haver um hétero infiltrado ali. Eu proponho que se faça um teste. Que todos os jogadores beijem ardentemente o Frajola (repórter esportivo do Pop Bola), na boca!" E Frajola: "Eu não! E o risco de me apaixonar?" Durante a entrevista de Frajola com Bárfara Pah, Lopes solta: "Me dá um litrão desse aí que eu vou! (ficar com Pah)"

O técnico do Pop Bola,

Vice-campeão olímpico

Diferentemente do Pop Bola, que não tem jogadores fixos, o BeesCats mantém basicamente a mesma escalação. O atacante Flavio Amaral, 27 anos, conta que eles criaram o time em 2017 e, desde então, sagraram-se campeões no 1º Torneio Interestadual, promovido naquele ano por um aplicativo de relacionamento; e também no torneio da Liga Gay Nacional de Futebol (Ligay); foram ainda vice-campeões dos Gay Games, a olimpíada LGBTQI+, realizada no ano passado em Paris. "Nós ganhamos de goleada dos Estados Unidos, de 16 a 0; da Inglaterra, de 8 a 0 e da Irlanda, de 11 a 3. Mas venceu a França", conta Amaral.

A explicação da origem do nome BeesCats Soccer Boys demanda um parágrafo.  A partícula "bee", que significa abelha em inglês, é uma forma "fofa" de pronunciar a primeira sílaba o termo "biba"; que, por sua vez, seria a alternativa infantilizada para a denominação "bicha". Juntando bees, no plural, com cats, de gatos, chega-se à homofonia "biscates"– que dispensa tradução. No subtítulo, os termos soccer (futebol, em inglês) e boys (garotos) compõem uma sequência que soa como "só quer boys".

Confraternização no meio da partida, só para jogador fora do armário (Foto: Lucíola Villela/UOL)

Vantagem técnica

Desde 2017, surgiram mais de 50 times gays em todo o Brasil. Segundo Amaral, a "interação"(= pegação) entre os jogadores é intensa. O que não significa que eles não levem o jogo a sério (haja vista os títulos conquistados): "Nossos adversários regulares são homens gays, que gostam de se cuidar e costumam ser bonitos, então é inevitável", ri. Jornalista de formação, ele conta que sempre foi apaixonado por futebol, é torcedor do Vasco e começou cobrindo esportes. Trabalhou no jornal Lance, na TV Globo, é professor universitário e contribui no Pop Bola. "Poder falar de futebol de forma mais leve, bem humorada, é muito aliviante. O ambiente nas editorias de Esportes das redações é extremamente homofóbico. Ao mesmo tempo, participar de um time gay me ajudou muito a me assumir, inclusive para mim mesmo."

O atacante Amaral, o repórter Frajola, do Pop Bola, e o publicitário Alex Calheiros, mentor da partida (Foto: Lucíola Villela/UOL)

Logo depois do primeiro gol do Pop Bola, o BeesCats marca três. Na cabine de transmissão do jogo, Lopes grita ao microfone que falta ao time dos héteros "personalidade". "Vamos sair de trás, bando de babacas! Cadê o Ulysses Guimarães pra entrar no jogo?" Ao mesmo tempo, elogia um jogador do time gay: "Achei interessante que o zagueiro dos BeesCats colocou a mão na bola, o juiz marcou, ele pediu desculpas. É educação esportiva, amigo"; Araújo emenda: "Eles podem ensinar muitas coisas pra gente. Mostram educação, elegância, homens bonitos, e jogam uma bola redonda, né Lopes?"

"Podem ensinar muitas coisas pra gente."

 

 

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.