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Paulo Sampaio

Moradores de prédio tradicional de SP se rebelam contra proibição de short

Paulo Sampaio

28/02/2018 05h00

O Carnaval deixou um rastro de discórdia entre os condôminos do edifício Planalto, um dos mais tradicionais do centro de São Paulo, com 60 anos de existência. Por considerar as fantasias de alguns moradores indecorosas, a administração desenterrou uma norma do regulamento interno que proíbe o trânsito pelas dependências do edifício "em trajes praianos e/ou sumários (sem camisa, maiô, shorts etc)". Fixou em todos os elevadores o aviso:

Indignados, os supostos difusores da impudicícia foram bater na porta da administração. Queriam saber, entre outras coisas, qual o conceito de "trajes sumários" e quem faria avaliação para liberar a entrada dos condôminos. "Bermuda pode?", perguntavam-se, confusos. "E biquíni com canga?" (O prédio possui um espaço na cobertura, onde é permitido tomar sol). De acordo com o arquiteto Daniel Korn, 24 anos, a funcionária que o atendeu estava de bermuda. Mas não soube explicar quantos centímetros de pano nas laterais caracterizavam um short.

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Choque geracional

Basicamente, há dois perfis de moradores no Planalto. O primeiro, dos que se sentiram incomodados com as fantasias de Carnaval, é composto por idosos que vivem no prédio faz muitos anos, alguns desde sua inauguração; o segundo é integrado por pessoas mais jovens, com idades entre 20 e 35 anos, que exercem profissões ligadas à comunicação, à arte, à estética, e em geral foram morar ali atraídos pela arquitetura modernista do prédio, uma das obras mais incensadas do empreiteiro João Artacho Jurado (1907-1983).

Os dois grupos sempre se estranharam: "Não se trata apenas do gigantesco choque geracional, mas também do cultural", diz a socióloga Ariadne Natal, 30 anos. "O convívio poderia ser rico, mas na prática há uma série de confrontos."

O perigo é a multa

Para Ariadne, a questão dos trajes no Carnaval deveria ser resolvida de forma pacífica, com prevenção ou argumentação, mas "a sociabilidade é regulada e punitivista". "Tudo aqui pode acabar em multa."

Ela conta que a administração afixou um aviso na cobertura, ameaçando de punição quem subir no parapeito. "O perigo é a multa e não a queda", ela ri.

Aviso na cobertura: "O perigo é a multa, não a queda" (Foto: Ariadne Natal/Arquivo Pessoal)

O advogado Marcio Rachkorsky, especialista em questões condominiais, diz que teve uma experiência complicada no Planalto. "Saiu dali uma administração da pesada, que estava no comando fazia muito tempo e era acusada de uma série de irregularidades, e entrou um cara bacana, sereno, equilibrado, que não conseguiu ficar mais de um ano. Aí, veio outra turma da pesada, de senhoras super-retrógradas, extremamente beligerantes, que querem processar todo mundo."

Quando a turma que Rachkorsky chama de "Liga das Senhoras Católicas" entrou, ele saiu: "Eu tenho um estilo mais liberal, gosto de fazer acordo. Esse tipo de regra, durante o Carnaval, parece oportunista, uma provocação para as pessoas que querem se divertir. Os excessos têm de ser coibidos, mas só se houver atentado ao pudor, o que não parece ter sido o caso. Eu acho que eles aproveitaram a situação para fazer patrulha."

Intervencão aos berros

Daniel Korn conta que foi vítima no fim do ano da política punitivista: "Avisei antes que usaria meu apartamento para fazer um vídeo caseiro, sem fins comerciais, para um trabalho de faculdade. Segui todas as normas do condomínio, deixei o nome de quem viria na portaria, disse que usaria o elevador bem cedo para transportar o equipamento. Sete ou oito minutos de viagem. Aí, os dois atores do filme foram barrados na portaria. Momentos depois, uma funcionária da administração invadiu meu apartamento aos berros, ordenando que parassem tudo. Eu disse que ela não poderia falar comigo daquele jeito, na minha casa, e pedi com educação que descêssemos para conversar na portaria. Não houve jeito. Ainda recebi uma multa dois dias depois."

Mas o que levou Korn a se tornar um dos revoltosos mais ativos contra a norma rediviva dos trajes sumários foi ter sido, ele mesmo, interpelado pelo porteiro no domingo de Carnaval, quando entrava no prédio com mais três amigos. "O porteiro me puxou em um canto e disse, baixando o tom de voz: 'Vocês vão ter problemas com a síndica. Todo mundo que entra está sendo filmado. O pessoal exagerou nas fantasias."'

Os quatro não deixavam à mostra mais do que braços e pernas (e a cabeça).

Idade média

Sem saber ao que o porteiro se referia, Daniel perguntou se ele havia recebido ordens de avaliar a roupa de quem entrava ("o que era grave"), ou se estava fazendo por conta própria ("mais grave ainda"). O arquiteto tirou uma foto do grupo e submeteu a outros amigos, para saber se havia algo absurdo. "O bloco em que nós estávamos, na 23 de maio, era muito ruim, a gente não tinha sequer bebido." Até então, o aviso ainda não havia sido colocado no elevador.

Depois de enfrentar a blitz na portaria, Korn postou uma mensagem na página que um grupo de moradores do Planalto mantém informalmente no Facebook.

O post recebeu 105 comentários: "Eu acho que vim morar em um colégio de freiras e não tinha me dado conta", diz um. "Dos mesmos autores do salão de festas sem música e da proibição de sair de casa com uma latinha de cerveja na mão, vem aí a blitz da saia curta", ironiza outro; "Não há limites para o autoritarismo! Moradores e funcionários reféns da síndica", reage um terceiro.

Homem de maiô

Correu no Planalto a informação de que um dos motivos que levaram à ressureição da norma dos trajes sumários foi o registro, no sábado de Carnaval, de um "homem de maiô" desembarcando do elevador do edifício. O produtor de eventos Risaldo Carvalho, 26 anos, não tem dúvida de que esse homem era ele: "Eu estava sozinho, ia encontrar meus amigos, quando o porteiro me parou. Eu senti que ele ficou sem graça de fazer aquele papel. Esses funcionários ficam num fogo cruzado, imagina. São a face do condomínio dizendo para pessoas que eles vêem todos os dias que a roupa delas não é adequada."

Para Carvalho, no caso dele houve um componente homofóbico. "Nitidamente, ele considerou minha fantasia 'feminina demais'. O problema é que essa regra é muito arbitrária e abre espaço para interpretações absurdas. Aquilo estragou minha noite."

No dia seguinte, Carvalho foi para o bloco usando short, camiseta e vestido. "Entrei correndo para não passar de novo pelo constrangimento de ser parado." Ele diz que foi ameaçado de receber uma notificação: "Pena que não mandaram", diz ele. "Eu revidaria com um processo com base na lei (estadual) 10.948 (de 5 de novembro de 2001, que "dispõe sobre penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão da orientação sexual e dá outras providências").

Big Brother

Para dar uma dimensão da patrulha no prédio, o publicitário Darwin de Oliveira, 33 anos, conta que uma das condôminas da ala conservadora costuma se deleitar assistindo o monitoramento do entra e sai do edifício: "Existe uma transmissão do registro das câmaras instaladas no prédio.Tipo Big Brother", diz ele, perplexo.

No domingo, o aviso proibindo trajes sumários ainda estava no elevador 4 do edifício, como constatou (e fotografou) o blog. A administração afirmou aos condôminos que iria retirar todos, e que aquilo não era motivo para fazerem todo esse movimento.

A ala jovem discorda. "Não se trata de um fato isolado. É mais uma demonstração bizarra da forma de pensar e de agir da administração. Tenho muitos amigos que usam vestido longo, e acho que não cabe a ninguém avaliar isso, só a eles", afirma Daniel.

Outro lado

Procurada pelo blog, a administração não quis se manifestar.

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.