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Paulo Sampaio

A mulher negra é 2,4 vezes mais vulnerável à Aids, afirma militante HIV+

Paulo Sampaio

27/07/2018 05h05

Para o militante soropositivo  Carlos Henrique de Oliveira, fundador dos coletivos Loka de Efavirenz e Jovens Vivendo com HIV, o governo acha que basta disponibilizar o remédio pra resolver o problema (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Em São Paulo, uma mulher negra portadora do vírus HIV tem 2,4 vezes mais chances de adoecer de Aids. Quem afirma é o militante soropositivo Carlos Henrique de Oliveira, 25 anos, que trabalha com saúde pública (na área administrativa), faz pós-graduação em sociologia e coordena os coletivos Loka de Efavirenz (cujo nome faz referência a um medicamento anti-retroviral que "provoca efeitos colaterais violentos, como pesadelos e alucinações"); e Jovens Vivendo com HIV. Em ambos, lida com a população pobre, vulnerável, que tem muita dificuldade de acesso à saúde.

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De acordo com Oliveira, a taxa de detecção do vírus da Aids é três vezes maior em mulheres negras. "Fazem parte dessa população as casadas com heterossexuais; as bissexuais; e as profissionais do sexo", diz. "Falta ainda incluir no mapeamento o total de mulheres trans." Ele explica que "além de ser muito mais difícil para uma mulher negra ter acesso aos mecanismos de prevenção, ainda tem a desinformação, o machismo, a dificuldade de negociar o uso da camisinha com o marido". "Em cidades do interior, é muito comum essas mulheres terem vergonha de pedir preservativos nos postos – por medo, questões religiosas, morais."

Pesquisa feita pelo Centro de Referência e Treinamento DST/Aids (CRT) revelou que a infecção por HIV continua crescendo tanto em brancos quanto em negros. Mas o número de brancos que desenvolvem a Aids sofreu queda, enquanto o de negros se mantém em linha ascendente. Quem tem o vírus não necessariamente desenvolve doença. "Uma coisa é contrair o HIV; outra é desenvolver Aids, outra morrer de Aids", diz o sanitarista Arthur Kalichman, do CRT, que coordenou a pesquisa.

Abaixo, trechos da entrevista que Oliveira concedeu ao blog.

Blog –– Quais os principais motivos que levam a população negra a continuar adoecendo de Aids?

Carlos Henrique de Oliveira — Os gestores da saúde pública enxergam a epidemia do HIV pelo lado farmacêutico/biológico. Eles acham que basta dar o remédio para salvar a vida. O pensamento hegemônico em relação ao HIV é: 'Uma vez que eu disponibilizo a medicação, as pessoas só vão morrer se quiserem'. A narrativa é essa.

Blog –– Então, há medicamento, mas falta acesso?

Oliveira –– O governo simplesmente não leva em conta as condições de saúde, de moradia, de segurança em que a maior parte da população vive. Pensa no tratamento em condições ideais. Bom, então eu tomo meu medicamento, vou me alimentar, tenho um emprego seguro, tá tudo certo. Não, não está. Para a maioria da população, não está.

Blog — Mas o Brasil não é referência no tratamento da Aids?

Oliveira — Foi. Depois do esforço comunitário das décadas de 1990 e 2000, o governo decidiu tratar a doença como um problema solucionado. Quando a gente vai em simpósio sobre Aids, tem a impressão de que está tudo resolvido. Fala-se de PrEP (Profilaxia Pré-expsoicão ao vírus da Aids) e PEP (Profilaxia Pós-exposição), como se tudo se resumisse a medicamento. Aí, eu tenho um amigo que foi diagnosticado com o HIV, recebeu o medicamento mas abandonou por causa de uma depressão profunda e morreu depois de de contrair o vírus da Hepatite A na ocupação em que ele morava.

Blog –– De certa forma, então, o medicamento piorou a situação?

Oliveira –– O medicamento, sozinho, não resolve. Em Itaquera, onde eu moro, ninguém distribui o folder explicativo de prevenção. É só um panfleto na época do Carnaval, onde se lê: "Use camisinha." A coisa é muito jogada. O racismo e as desigualdades sociais levam a população negra, que coincide com a pobre, a acessar os serviços de saúde de forma precária e tardia. Eu mesmo, apesar de trabalhar em hospital, só fui saber que havia contraído o vírus quando já estava com a doença (ele diz conseguiu reverter o diagnóstico e que hoje a quantidade de vírus em seu organismo é indetectável).

Blog –– Nada mudou?

Oliveira — Sim, pra pior. Desde 1988, o SUS funcionava de acordo com cinco blocos que faziam o chamado repasse "fundo a fundo", regulamentado pela portaria nº 204/2007 do ministério da Saúde: 1. Atenção básica; 2. Assistência; 3. Média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar; 4. Vigilância em saúde; 5. Investimento. Então, a portaria nº 3992, de dezembro de 2017, dissolveu os cinco blocos e criou dois ( de custeio e de investimento), que dão amplos poderes de manuseio dos recursos aos estados e municípios. Ou seja, houve uma flexibilização do uso das verbas, que agora vai depender de quem está no poder.  O dinheiro que era para investimento na prevenção da Aids, ou para transplantes de rim, agora pode ser gasto na construção de hospitais.

Blog — Na prática, como isso se verifica?

Oliveira — Houve um corte, por exemplo, de exames de CD4, que averigua o número de células de defesa no organismo. Antes, eles garantiam o teste a cada seis meses; agora, só no primeiro ano após o diagnóstico. O mesmo aconteceu com o exame de carga viral, que pode informar se o vírus já está indetectável — o que diminui o risco de contágio.

Blog — A crise política agravou a situação?

Oliveira — Sem dúvida. Pra começar, o governo estabeleceu um teto para os gastos públicos nos próximos 20 anos que começou a vigorar de fato em 2018. O impacto disso na saúde vai ser gigantesco. O reajuste do investimento não será proporcional ao crescimento da população e das necessidades dela. Bem ou mal, a coisa ainda caminhava.

Blog –– Como isso atinge as campanhas de prevenção?

Oliveira — Com as PECs dos gastos públicos, houve um desmonte dos postos de prevenção em localidades carentes da periferia. As campanhas sumiram. Você vai sentir esses cortes lá na frente, quando o número de mortes aumentar. O marketing midiático é importante, mas, nessas comunidades, vale pouca coisa se não houver o boca a boca. As campanhas tem de chegar junto dessa população.

Blog — Isso faz com que os números da Aids nessa população tenda a crescer

Oliveira — Não é só a Aids. Se você vê os números da tuberculose, da sífilis, a mortalidade no cárcere, na maioria das vezes por causa de doenças tratáveis, todos estão subindo. As mulheres  negras são as mais atingidas. Elas têm 2,4 vezes mais chances de adoecer de Aids.

Blog — Muitos falam que os jovens de hoje não têm medo da Aids

Oliveira — Evito usar as palavras "vítima" e "culpa", porque o governo tende a responsabilizar os jovens que contraem o vírus, para se eximir de sua própria obrigação. Eu mesmo, antes de me aproximar desses grupos de jovens, achava que eles estavam mentindo a respeito de falta de informação, por leviandade. Mas então eu vi que eles não se negam a falar do assinto. E que a informação de fato não tinha chegado a eles. Eu me espantei com o nível das perguntas. Coisas do tipo: "Pega no beijo?" "Posso ter amizade com alguém que tem HIV"? "Se ela espirrar eu pego"? Se o nível de desinformação é tão alto, um display de camisinha não significa muita coisa para esse jovem.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.