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Paulo Sampaio

Em crime semelhante, defesa alegou 'clamor social' para mudar local do júri

Paulo Sampaio

12/08/2018 05h00

No dia 10 de outubro de 2000, a professora Estela Pacheco foi encontrada morta no jardim do edifício onde morava o pecuarista Mauro Janene, seu ex-namorado, em Londrina, cidade a 390km de Curitiba. Acusado de tê-la esganado até a morte e jogado seu corpo da sacada do apartamento, Janene conseguiu adiar o júri 7 vezes. Em uma delas, a defesa pediu o desaforamento do processo, termo jurídico que designa a transferência do julgamento para uma cidade distante de onde o crime ocorreu. Alegava que o "clamor social" provocado pelo movimento "Justiça para Estela", encabeçado pela filha da professora na Internet, poderia interferir na decisão dos jurados e constituía um risco para o réu. Com isso, além de ganhar tempo, Janene acabou sendo submetido a um júri que, tanto tempo depois, pouco lembrava do crime. Mesmo assim, em março deste ano ele foi condenado a 11 anos de prisão.

Semelhante ao caso de Estela, o da advogada Tatiane Spitzner tem praticamente os mesmos elementos. No último dia 22 de julho, Tatiane caiu do quarto andar do edifício Golden Gate, em Guarapuava, cidade a 250km de Curitiba, depois de ser brutalmente agredida pelo marido, o professor Luis Felipe Manvailer, 32, acusado de tê-la jogado da sacada. Ela tinha 29 anos.

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Mauro Janene Costa (esq.) condenado a 11 anos de cadeia pelo assassinato de Estela Pacheco (Foto: Arquivo Pessoal)

Réu em três crimes, Luis Felipe Manvailer agrediu violentamente a mulher, Tatiane Spitzner, durante quase vinte minutos (Foto: Arquivo Pessoal)

Repercussão mundial

O "clamor social" provocado pelo crime poderia inspirar na promotoria preocupação com o desaforamento. A questão é que nesse caso a repercussão foi mundial:  "A notícia saiu até no New York Times. Hoje, um jornal francês me ligou querendo saber da história", conta a promotora Dúnia Rampazzo. "O que adianta transferir o júri para outra cidade do Brasil, se tem gente perplexa até lá fora? Como a defesa se valeria da eventual ignorância do jurado, se todo o Planeta está comentando?"

A princípio, a promotora tem razão. Mas e se o júri for adiado muitas vezes, como o de Estela? Que jurado se lembrará do "caso Tatiane Spitzner" daqui a 17 anos? Se as imagens brutais de um crime ocorrido hoje viralizam nas redes sociais, o mesmo vai acontecer com as de um crime brutal cometido amanhã e depois de amanhã. Por mais violenta que tenha sido a cena, a imagem brutal de hoje é "apagada" pela de amanhã.

Pelo sim, pelo não, a promotora desaconselhou a população de Guarapuava a promover ontem uma caminhada de repúdio ao feminicídio e em memória de Tatiane. "Isso iria provocar ainda mais a iniciativa do desaforamento. O clamor social na cidade já é imenso", diz Dúnia.

Réu em três crimes

Na quarta-feira, 8 de agosto, a juiza Paola Gonçalves Mancini, da 2a. Vara Criminal de Guarapuava, aceitou a denúncia do Ministério Público contra Manvailer. Ele é réu pelos crimes de cárcere privado (por impedir a fuga da vítima); homicídio quadruplamente qualificado (por motivo fútil, asfixia, recurso que dificultou a defesa da vítima e feminicídio); e fraude processual (por remover o corpo da vítima e alterar a cena do crime). O professor, que nos últimos tempos passou a desprezar a mulher na cama e a dizer que tinha nojo dela, pode pegar de 12 a 30 anos de prisão.

O crime viralizou não só por conta da divulgação das cenas de brutalidade, mas também pela dificuldade que a opinião pública teve em associar o agressor violento ao homem bonito, de sorriso afável, que aparecia nas fotos postadas pelo casal nas redes sociais. "Hoje, depois de assistir às imagens da agressão, e ver que ele (Manvailer) se olhou no espelho do elevador não com desespero, mas com vaidade, ajeitando o cabelo e limpando os dedos, a gente percebe o quão dissimulado o Luis Felipe sempre foi. E o quão falso foi aquele depoimento dele na polícia", diz a contadora Bruna Spitzner, prima de Tatiane e uma das pessoas mais próximas dela.

Tatiane (a mais alta), a irmã ( à esq. da noiva) e as primas, no dia do casamento de Bruna (Foto: Arquivo Pessoal)

Princesa do pai

Bruna conversou com o blog no prédio onde funciona o escritório de advocacia de Jorge Spitzner, pai de Tatiane, e o de contadoria de Dolores Spitzner, a mãe. Apesar de estarem trabalhando, ambos pediram a um funcionário para dizer ao blog que não tinham condição emocional para conversar sobre o crime. "O tio Jorge criou a Tati e a irmã dela como duas princesas. Sempre foi  louco pelas duas, fazia todas as vontades delas", diz Bruna. "Nossa família é muito unida, éramos cinco primas inseparáveis, do tipo que vai junto para a casa da avó tomar café e comer bolo."

Na semana anterior à morte de Tatiane, a família foi para Caldas Novas, Goiás, em uma viagem organizada por ela. Integravam o grupo Jorge, Dolores, Luis Felipe, Tatiane, Luana (irmã mais nova dela) e Renan Neves, advogado que trabalha no escritório de Spitzner. Neves é o encarregado de falar com a imprensa. Diz que não se notava agressividade de Manvailer em relação à mulher, "apenas um certo distanciamento entre os dois". "Na frente dos homens, o Luis Felipe era mais tranquilo, então não dava para avaliar o que acontecia com eles na intimidade."

A última viagem, a Caldas Novas, com o marido e a família (Foto: Arquivo Pessoal)

Turbilhão emocional

Por meio de seus advogados, Manvailer nega que tenha matado a mulher. Sua defesa afirma que o casal vivia "feliz" e que ia para o quinto ano de relacionamento. Alegando que o professor está "profundamente abalado pelo turbilhão emocional sofrido nos últimos dias" e que vinha apresentando "quadro de depressão profunda", seus advogados pediram a transferência do professor da Penitenciária Industrial de Guarapuava (PIG) para o Complexo Médico-Penal (CMP), em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, "para atendimento psiquiátrico e psicológico urgente".

De acordo com o laudo elaborado por um médico da secretaria da Saúde de Guarapuava, Manvailer "acha que a esposa pulou da sacada", mas "não lembra do que ocorreu". O professor diz ainda que, se realmente fez isso, "deveria morrer".  Segundo a defesa, ele teria tentado "tirar a própria vida".

Extremamente inteligente

Apesar do acontecido, tanto Renan Neves como Bruna Spitzner reconhecem, assim como boa parte dos entrevistados, que Manvailer é "extremamente inteligente e preparado". O professor conheceu a mulher quando ela fazia pós-graduação em Curitiba, cidade onde ele morava. Um pouco depois, ela o acompanhou em um curso na Alemanha. "Ele fala alemão, inglês, francês e tem uma grande capacidade cognitiva. Pessoalmente, é simpático e educado", diz Bruna.

Entretanto, pensando retrospectivamente, ela agora enxerga em Manvailer um homem complexado, egocêntrico e inseguro: "Ele sempre desqualificava a Tati, a rebaixava, para mostrar que tinha domínio da situação." Tatiane chegou a pedir o divórcio, o que Manvailer prontamente negou; segundo a prima, ela andava sem paciência para o marido.  No dia do último jogo da Copa (França e Croácia), quando um grupo de amigos se reuniu para assistir na casa da contadora, Manvailer "fez umas brincadeiras bobas, tipo largar o corpo em cima da Tati, numa tentativa meio infantil de atrair a atenção dela".

Porra da prova

Na universidade Guairacá, onde Manvailer dava aulas de microbiologia e imunologia nos cursos de enfermagem, odontologia e biologia, algumas alunas relataram episódios de descontrole do professor. Pauline Rodoshinski, 26, e Anna Caroline Heinen, 22, do curso de enfermagem, lembram de um dia em que ele distribuiu a prova e mandou que os alunos a mantivessem virada para a mesa. "Uma menina desvirou, ele foi até ela furioso e falou rispidamente: 'Eu disse para manter a porra da prova virada!'."

De acordo com Pauline e Anna Caroline, a coordenação do curso recebia muitas reclamações acerca do comportamento de Manvailer: "Ele passou uma aula inteira conversando com a gente, para saber no que podia melhorar."

Agressão e choro

Andressa Bronholo, 19, 5º período de odontologia, diz que Manvailer "era brusco, estúpido". "E não só comigo". A grosseria com Andressa foi por causa de um exercício de química que ela não soube fazer. "Ele disse que eu não conseguia absorver conhecimento. Naquele dia, cheguei em casa chorando. Depois, fui à coordenadoria me queixar e chorei de novo." Paradoxalmente, Andressa o considerava um bom professor.

"Nunca soube de nenhuma queixa contra ele", diz o professor de física Juarez Matias Soares, proprietário da Guairacá. Inaugurada em 2005, a universidade oferece 15 cursos e tem 3 mil alunos que pagam entre R$ 380 e R$ 2 mil de mensalidade. Manvailer foi indicado para dar aulas na universidade pelo pai de Tatiane, que defendeu a primeira causa da instituição. "Ele (Manvailer) era um forasteiro na cidade", lembra Soares. Curitibano, o professor recém-chegado da Alemanha não tinha praticamente nenhum relacionamento no meio acadêmico de Guarapuava.

Agora, fechou as portas de vez. A Guairacá rescindiu o contrato dele e, ao que tudo indica, tão cedo Luis Felipe Manvailer colocará os pés na cidade. Até porque, ainda tem a pena para cumprir.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.