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Paulo Sampaio

Homem trans fala sobre transição de gênero, bissexualidade e solidão

Paulo Sampaio

10/12/2018 04h00

Antes, Carlos Eduardo era uma mulher lésbica. Ao passar pelo processo de mudança de gênero, se tornou um homem trans. Então, pela primeira vez, fez sexo com outro homem — um cis gay. Que vem a ser o homossexual que se identifica com o gênero designado no nascimento. Agora, Carlos Eduardo se define como um homem trans bissexual.

É sobre sua saga em relação à identidade de gênero — e à solidão decorrente dela — que ele vai falar em uma palestra marcada para amanhã, no teatro da Aliança Francesa, em São Paulo. O evento faz parte do primeiro encontro de organizadores de paradas LGBT de 37 municípios de SP, em parceria com o CRT (Centro de Referência e Treinamento DST/Aids da Secretaria do Estado da Saúde).

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Fila para transição

Em dois dias, dirigentes da parada de SP e técnicos do CRT vão transmitir a lideranças regionais sua experiência em prevenção, saúde e também em instrumentalização de marchas (captação de recursos, segurança e marketing). "Nossa ideia é articular uma ação conjunta para tentar atingir a população vulnerável em regiões onde a sociedade civil alcança, mas o poder público tem dificuldade de chegar", diz a psicóloga Fabíola Lopes, do CRT, onde Carlos Eduardo chegou a passar por uma triagem, entrou em uma fila mas acabou não sendo chamado.

Segundo Fabíola, há no momento 1.800 usuários do Ambulatório de Saúde Integral para Transexuais e Travestis, o que inclui pessoas dispostas a fazer a transição de gênero e também as que desejam se submeter à redesignação de sexo — cirurgia de reconstrução das genitais. A maior parte destas últimas são mulheres trans, cuja feminilização pode levá-las a esperar até sete anos. "O único hospital que faz a cirurgia é o Mario Covas, em Santo André", explica a psicóloga. Ela diz que o Hospital das Clínicas tem uma regulamentação própria, e lá a fila é ainda maior.

Pacientes como Carlos Eduardo, que mantiveram a genital, teoricamente esperam menos tempo, já que se submetem apenas à mastectomia masculinizadora — que pode ser realizada por mais de um hospital — e à terapia hormonal. No caso dele, o laudo foi assinado por uma psicóloga particular, indicada por uma profissional do CRT, e a cirurgia foi um presente de seus pais.

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O auxiliar administrativo Carlos Eduardo de Lima Moraes, 24, diz que tem outra relação com o espelho depois da transição (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Retificação do nome

Na semana passada, quase quatro anos depois de iniciar o processo de transição de gênero, Carlos Eduardo puxou o RG do bolso e mostrou com indisfarçável orgulho sua nova identidade. "Precisei entrar com uma ação na Justiça, porque ainda não havia a possibilidade de fazer a retificação do nome no cartório", conta ele, que trabalha como auxiliar administrativo. Diz que conseguiu a documentação em seis meses, sem custos, com a ajuda do CRD (Centro de Referência e Defesa da Diversidade), da Prefeitura de SP.

Desde agosto, os transgêneros podem fazer a retificação de nome e gênero diretamente no cartório, sem necessidade de apelar para a Justiça nem de passar pela cirurgia de redesignação de sexo. O provimento 73 da Corregedoria Nacional da Justiça (CNJ) regulamenta uma decisão tomada em março deste ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando seis ministros votaram a favor do direito a mudar o nome e o gênero no registro, incluindo a presidente do supremo, Carmen Lúcia. Foram votos vencidos o relator, Marco Aurélio Melo, e os ministros Alexandre Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Transexualidade quem?

Enquanto cofia a barba, Carlos Eduardo conta que até os 19 anos nunca tinha ouvido falar em transexualidade. "Eu nem imaginava que existia", lembra. Informações sobre o assunto não chegavam a Franco da Rocha, no extremo da zona oeste de São Paulo, onde ele mora até hoje com os pais e duas irmãs mais velhas. Antes da transição, quando se contentava em ser lésbica, ele manteve um relacionamento de três anos com uma garota da sua idade,  mas não era exatamente feliz.

O apoio da família não resolvia o desconforto em relação ao próprio corpo: "Quando tomava banho, cobria o espelho com uma toalha para não me ver. Eu não tinha mais vida social. Mal saía de casa", conta. Foi então que ele descobriu grupos de homens trans na Internet, e começou a se informar. Embora seus pais, servidores públicos, o acolhessem como homossexual, ambos ficaram assustados quando ele informou que pretendia fazer a transição. "A psicóloga me ajudou a explicar a eles que não se tratava de uma doença", diz.

Objeto de estudo científico

A primeira vez em que procurou o CRT foi em 2014; depois de um hiato de um ano, retomou o processo e terminou em 2017, por conta própria. A "pós transição" trouxe um certo conforto social, mas ainda há muito a conquistar no campo do relacionamento íntimo. Ele fez sexo com poucas pessoas e não desenvolveu nenhum namoro. Por outro lado, apesar de não frequentar bares e baladas, nem se considerar uma pessoa "sexualmente ativa", Carlos Eduardo se descobriu atraente para ambos os sexos. Então, surgiu o "porém" mais complicado. Segundo conta, a maioria dos potenciais parceiros querem  "matar a curiosidade" de transar com um homem sem pênis: "Você se sente um fetiche, ou um objeto de estudo científico."

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O eventual receio de frustrar expectativas, e de se revelar uma fraude, não o faz cogitar a cirurgia de redesignação do sexo. "Nem me passa pela cabeça." Mas o mantém em uma certa inércia no campo da conquista. "Tenho preguiça de sair de Franco da Rocha, passar quase uma hora em um ônibus, e ainda ter de explicar tudo desde o início para uma eventual interessada", diz. Por enquanto, a solidão tem sido sua companheira mais assídua. "Ela é real. Mas se no começo pode parecer triste, depois você observa a dificuldade que as pessoas têm em manter um relacionamento estável, e dá graças a Deus de estar só."

Na Praça Roosevelt, centro de SP, segurando a bandeira trans em um projeto audiovisual (Foto: Arquivo Pessoal)

Experiência hétero

Na tentativa de resolver a parte concernente ao relacionamento, ele fez incursões pelos aplicativos de paquera. Graças a eles, se permitiu fazer sexo com outros homens. Um ineditismo. Ele conta que a aversão que desenvolveu pelo sexo masculino, atribuída a um episódio de violência sexual sofrido na infância, está razoavelmente superada. Sua queixa em relação aos dois parceiros que teve, ambos gays cis, remete curiosamente à parte feminina de sua personalidade: "Tudo se resume a penetração." Nesse caso, ele mesmo diz que foi levado pela curiosidade.

O convívio com heterossexuais cis é ainda mais remoto. "Em espaços heteronormativos, as falas são muito indelicadas. Ouço pérolas como: 'Se você ficou com homem, então você não é homem."'

Por enquanto, Carlos Eduardo aproveita o que a transição trouxe de positivo — o trânsito social, em determinado nicho. A palestra de amanhã não é a primeira desde a transição. Ele tem contado sua experiência para plateias relativamente grandes. "Falar sobre identidade de gênero agrega conhecimento não só a quem ouve, mas também a mim. Repetir a minha própria história me ajuda a elaborar melhor tudo o que eu vivi", diz.

Carlos Eduardo parece encantado com esse público que o especula com um interesse, digamos, romântico, supostamente sem preconceito. Pergunto se ele não receia cair em uma nova armadilha e se tornar um personagem de si mesmo. Ele reconhece que existe o risco, mas diz: "Não sei o que pode acontecer no futuro."

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.