Paulo Sampaio http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br Só mais um site uol blogosfera Tue, 27 Dec 2022 02:50:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 ‘O time do Flamengo todo me molestou, e eu adorei’, diz ex-rainha do clube http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2022/12/26/o-time-do-flamengo-todo-me-molestou-e-eu-adorei-diz-ex-rainha-do-clube/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2022/12/26/o-time-do-flamengo-todo-me-molestou-e-eu-adorei-diz-ex-rainha-do-clube/#respond Tue, 27 Dec 2022 02:50:04 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=23481 Já faz algum tempo, tipo 31 anos, mas Enoli Lara não esquece aquele Carnaval. Modelo, atriz, cantora, escultora, escritora, palestrante, símbolo sexual e geminiana, ela  foi onvidada pela diretoria do Flamengo para sair na ala que homenageava o time na escola carioca União da Ilha, cujo enredo era Aquarylha do Brasil (1988). Na ocasião,  informaram a ela que não havia verba para uma fantasia que contemplasse mais que um cocar e uma camisa do time. Enoli achou meio “pobre”, e então o carnavalesco Max Lopes concordou em trocar a camisa por uma pintura feita diretamente no corpo dela, com as cores do time.

“Um amigo artista plástico me pintou lá mesmo, embaixo do balança-mas-não cai (prédio emblemático, de quase 200 apartamentos, nas vizinhança da Sapucaí), cercada por um cordão de policiais, para me proteger do assédio do povo”, lembra Enoli, 70 anos.

Veja também:

 

Com Renato Gaúcho, no Carnaval de 1988, quando pintou o corpo com as cores do Flamengo (Foto: Arquivo Pessoal/UOL)

Tótem rubro-negro

Na avenida, ela saiu junto com os jogadores: “Tava todo mundo alto, porque deram uma cachacinha de brinde na concentração”, diz. Lá pelo meio do desfile, tomado por um desejo coletivo incontrolável, o time se juntou em torno de Enoli, como se ela fosse um técnico no campo, e passou a boliná-la por todos os lados: “O Renato (Gaúcho) abocanhou meus seios, e tinham mãos atrás, na frente, línguas, dedos… Os seguranças tiveram de me tirar dali, porque eu não conseguia mais desfilar.”

Não que ela tenha achado ruim. De jeito nenhum. No centro da avenida, Enoli Lara diz que se sentiu algo próximo de uma “divindade”. “Eu era um tótem no meio daqueles homens”, conta ela, cerrando os punhos e os olhos com uma expressão que mistura êxtase e drama. “Você pode imaginar o que aquela cena não aguçava o imaginário masculino…”

Na avenida, em 1988, frente e verso (Foto: Arquivo Pessoal)

Sexo, poder e dinheiro

O time do Flamengo, na época, tinha Zé Carlos, Jorginho, Leandro, Edinho e Leonardo; Andrade, Aílton e Flávio; Renato Gaúcho, Bebeto e Zinho. Para Enoli, tudo começou a acontecer quando a elegeram “rainha do clube”. “Fui a única”, afirma ela, com muito orgulho. “A Cláudia Raia foi também, mas só do baile (vermelho e preto). Eu fui do time, do baile e também madrinha do futebol na areia. O juiz era o Margarida, ele pedia a camisa dos jogadores dizendo que ia agilizar um encontro erótico deles comigo.”

Lara, como a chamam os amigos, é extremamente grata ao clube. Não só pelos  orgasmos que vários craques proporcionaram a ela — além de Ranato Gaúcho, a modelo teve um caso (não tão expressivo) com Gauchinho, e chegou a entrar no vestiário do time na Gávea para fazer sexo com vários deles (“foi quase uma Gang Bang”) –, mas também poder (“fui amante de um diretor, que é casado até hoje”) fama e dinheiro (“fiz os troféus que o time levou para os amistosos de 1988, nos EUA e México”).

Candidata à prostituta

Para ela, sexo, poder e dinheiro estão intimamente ligados. “Eu sou que nem a Gabriela (personagem do romance de Jorge Amado), teúda e manteúda. Mulher bíblica. Gosto de ser presenteada com jóias, carros, apartamentos…”.

Apesar de achar justo receber uma remuneração informal pelo prazer que oferece, Enoli Lara afirma que nunca foi prostituta. Diz que respeita muito a profissão, mas não é a sua “área”: a única vez em que se sentiu próxima disso foi quando se candidatou a vereadora pelo PFL carioca, também em 1988. “O ambiente da política, querido, aquilo sim é prostituição”, diz ela. Em um raro momento sombrio, Lara conta que perdeu uma fortuna na campanha.

A respeito dos valores no título do clube, Lara diz que “alguém pagou por aquilo, nem seu quem” (Foto: Arquivo Pessoal)

A escultora e o troféu feito para os amistosos de 1988 nos Estados Unidos: “O Flamengo me deu poder, fama e dinheiro” (Foto: Arquivo Pessoal)

Missão de vida

Nascida em Porto Alegre e criada em Curitiba, Enoli Lara tem a convicção de que cada ser humano vem ao mundo com uma missão. Ela seria “predestinada a servir a humanidade por meio do sexo”. “É kármico. Sinto que vim para ajudar pessoas que têm problemas nessa área, dificuldades de se soltar, fantasias não realizadas.”

Lara está prestes a lançar um canal no YouTube para exibir vídeos eróticos em que aparece fazendo sexo com amigos. Já gravou episódios com três parceiros, sem contar o próprio viedomaker, que é casado, então não pode mostrar o rosto. Para ela, que se define como “extremamente exibicionista”, isso não é um problema.

Pelo que Lara explica, os vídeos são tutoriais. “Desde os anos 90, eu tinha ideia de produzir algo assim, demonstrativo, para orientar as pessoas que não têm jeito para a coisa.”

Tutorial de oral

Ela garante que não existe no Brasil um trabalho feito com mulheres maduras que tenha um acabamento “sofisticado”. “Não é vídeo tipo caseiro não! Nada contra, mas eu sou muito detalhista, gosto das coisas bem feitas.” Amanhã, domingo, 22, ela grava um ‘tutorial de oral’.

Longeva no sexo, ela diz que começou muito jovem. Aos 7 anos, fez sexo oral em um padre (“eu podia ser uma criança, mas estava plenamente consciente”); aos 13, perdeu a virgindade; aos 17, engravidou na sala de casa, enquanto os pais faziam amor no quarto. “Meu pai era um homem muito viril, militar, usava farda, e eu tinha fixação em toda aquela indumentária. Pegava na arma dele como se fosse um falo.” O único filho, de 42, é teólogo, filósofo e biólogo. Mora em Curitiba.

Com o filho, Jefferson, e o neto, Adrian, segurando uma escultura em homenagem ao jogador Zico (Foto: Arquivo Pessoal)

Camille & Rodin

Em 1970, de passagem pelo Rio, ela foi apresentada por um tio artista plástico ao escultor Edgar Duvivier, 40 anos mais velho, que viria a se tornar seu marido por mais de dez anos. “Foi como Camille Claudel e (Auguste) Rodin”, diz ela, referindo-se à musa inspiradora, confidente, pupila e amante do escultor francês. “C’est la même chose.”

Embora tenha sido fiel a Duvivier nos primeiros tempos, Eloni diz que o sexo é uma “energia mística, sagrada e diabólica” que a domina. Os dois acabaram se separando, quando Duvivier descobriu pelo motorista da família (“a gente tinha até avião”) que ela andava saindo com o fotógrafo Antônio Guerreiro. “Aquela altura, eu já estava estudando teatro no Tablado, e o Guerreiro não era o único.”

Pelo comportamento libertário, Enoli já foi chamada algumas vezes de “mulher objeto”, mas diz que não se reconhece no epíteto: “Objetos eram eles, os homens. Sempre fui uma fêmea alfa.”

Antes da Zélia!

No dia da entrevista, Lara leva sua biografia para presentear o blog. “Trilogia do Prazer – A Sacerdotisa do Sexo” tem 300 páginas e é recheada de fotos, mas nada de encheção de linguiça. Os casos são tantos que dariam para editar um segundo volume. Quando conta, por exemplo, que foi amante do ex-ministro da Justiça Bernardo Cabral, ela faz questão de cravar a marca de seu pioneirismo: “Foi antes da Zélia (Cardoso de Melo)! E da Constituinte!”

Como será que o ministro, já quase com 60 anos, fazia para dar conta da predestinada? Na época, não havia Viagra. “Olha, naquele caso, eu tenho impressão que era prótese. Porque olha, ele era incansável!”

Poupança boa

Em relação à “trilogia”, no título do livro, Enoli diz que se refere a “futebol, sexo, e Carnaval” (“é o que me move, a minha pulsão de vida”). Entre as muitas histórias contadas na obra, está a rumorosa indenização que Eloni recebeu, depois de se reconhecer em um comercial do Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj), veiculado antes do “Jornal Nacional”.

“Apareciam as maravilhas do Rio, o Corcovado, o Cristo e eu, de costas, com um biquíni fio dental. Associavam a minha imagem à “poupança” Banerj; o termo era usado na época como sinônimo de bunda. Pois sem precisar usar a minha, ganhei 40 mil dólares e mais um apartamento de dois quartos.” Desde então, Enoli Lara deu várias palestras a respeito de cobrança por uso indevido de imagem.

Com Edgar Duvivier; o bronzeado foi adquirido na piscina do tríplex do casal (não na praia) (Foto: Arquivo Pessoal)

Jantarzinho no Gero

No começo da conversa, a entrevistada afirma que a vida toda preferiu homens mais velhos (“sempre foquei no conhecimento, na sabedoria, no intelecto”), mas, ao mesmo tempo, diz que ultimamente tem atraído “os de 30”: “Eles vêm atrás de mim, não sei por quê. Só digo a eles que sou acessível, mas não estou necessariamente disponível.  Não dá para passar de carro pra me pegar e querer fazer sexo no banco, sabe? Pelo menos da primeira vez, tem que me levar para um jantarzinho no Gero, um lugar bom.”

Seja qual for a faixa etária do parceiro, Lara gosta de lidar com “instrumentos grandes”. “Sempre fiz sexo com  homens bem dotados. De preferência, com dois ao mesmo tempo. Me sinto o pivô da concorrência fálica!” Ah, é verdade. Ela jura que nunca alguém falhou com ela na cama.

Será que não é muita coisa para almejar em um homem só: o intelectual, o bem dotado, o potente e o liberal (a ponto de permitir um segundo, e não uma segunda, na mesma cama)? Não. “O Duvivier, por exemplo, com 70 anos, transava três vezes por dia comigo.” Mas ela reconhece que ele era terrivelmente ciumento, e não a deixava ir a praia com o filho; ela tinha de tomar sol na piscina no tríplex.

Afrodite sem calcinha

No Carnaval de 1989, ano seguinte ao da “almôndega” com os jogadores, o enredo da União da Ilha foi “Festa Profana”. Promovida ao topo de um carro alegórico, a 30 metros do chão, Enoli Lara saiu de afrodite. Vestindo basicamente uma calcinha, ela se livrou da peça em pleno desfile: “Gente, deusa do sexo não usa calcinha”, alegou.

Ela conta que naquele dia havia passado a tarde na cama com o volante Paulo Roberto Falcão, seu namorado à época. Lara desmente os boatos a respeito da orientação sexual do gaúcho, de quem ouvia-se falar que era um gay no armário. “Foi um parceiro espetacular. Melhor oral que eu já tive. Era um príncipe, mandava flores, e ao mesmo tempo um devasso”, diz ela. “Por isso, eu o chamei de Calígula. Disse aos censores de ocasião que eu havia trazido dentro de mim, para a avenida, o gozo do Rei de Roma (como Falcão era conhecido na Itália), e que não fazia sentido manter a calcinha.” (Ela dá uma gargalhada e diz: “Me saí com essa!”).

A partir daquele ano, a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) proibiu nu total na avenida — para orgulho de Lara, que foi “a primeira e única” a sair sem nada na Sapucaí. “Depois de mim, elas deixavam cair o tapa sexo, mas não era a mesma coisa.”

Modelo de conservadora

A medida em que avançamos na conversa, percebo que Eloni sente muito prazer em praticar uma modalidade específica de sexo oral. Simplesmente, ela gosta de falar do assunto. Falar, falar.

O discurso é semelhante àquele que as feministas tanto desprezam nos homens que alardeiam seus feitos na cama. “Nos anos 1990, comi um número de homens que as mulheres da minha geração vão reencarnar 30 vezes e não vão conseguir”, afirma ela, que é fã da polêmica ensaísta norte-americana Camile Paglia, que se declara feminista, mas, ao mesmo tempo, é repudiada por um enorme contingente de militantes do movimento. “Sou conservadora como ela.”

Muito à vontade, em foto feito ontem (Foto: Zô Guimarães/UOL)

Pose, só pelada

Combinamos previamente que a foto seria feita no mesmo dia da conversa, e então Lara levou várias sacolas com algumas opções de roupa, todas muito justas, decotadas e em cores cítricas, intensas. Ao fazer as primeiras poses, ela se queixou de estar “sem posição”:  “Acho que não sei posar vestida”, concluiu, tentando se sentar de lado em uma das mesas do restaurante, com uma calça azul petróleo muito justa e o pé direito balançando no ar, acomodado em uma sandália plataforma dourada, de salto 20cm.

A fotógrafa a convence a fazer as imagens no dia seguinte, em outro lugar. “Minha casa tem uma luz ótima”, diz Zô. E assim foi.

O escrete da rainha

Hoje, sábado, 21 de dezembro, Enoli Lara vai dedicar o dia ao jogo Flamengo e Liverpool, na final da Mundial de Clubes, com foco nos jogadores que mais a seduzem. “O que mais admiro é o Diego, capitão. Gosto desde que começou, e agora mais ainda, pela participação decisiva na Libertadores.”

Mas “atração de verdade” ela diz sentir pelo meio-campista Gerdon, “o negão de tirar o chapéu”. “Depois, o Pabo Mari, o Arrascaeta, o Diogo e o Gabigol.”

Como já afirmou alguns parágrafos acima, Enoli Lara considera a companhia de apenas um homem na cama, pouco; dois, bom; e um vestiário cheio, melhor ainda. Em caso de “gang bang” com o time atual, ela convocaria ainda, para cumprir sua missão kármica, o técnico Jesus. “Pelo lado místico.”

 

 

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“Até sou feminista, mas nunca quis rezar missa”, diz freira progressista http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2020/01/15/ate-sou-feminista-mas-nunca-quis-rezar-missa-diz-freira-progressista/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2020/01/15/ate-sou-feminista-mas-nunca-quis-rezar-missa-diz-freira-progressista/#respond Wed, 15 Jan 2020 07:00:21 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=24022 Ao fim da missa de sétimo dia em memória do morador de rua Carlos Roberto Vieira da Silva, morto no último dia 5 depois de atearem fogo a seu corpo*, padre Júlio Lancellotti chama à frente da nave da catedral da Sé a irmã Regina Manoel. Coordenador da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, Lancellotti luta ferrenhamente desde os anos 1980 pelos direitos dos desfavorecidos.

Muito reverenciada não só pelo padre, mas também pelos cerca de 30 moradores de rua que assistiram à missa, a freira é abraçada por eles e diz algumas palavras sobre a dificuldade de atender àquela população. “A gente faz tantos esforços para que todas as pessoas tenham oportunidade à vida, e no fim a morte parece  cada vez mais sofisticada”, diz Regina, 67 anos, há 40 se dedicando incansavelmente à ações com moradores de rua.

Com Padre Julio Lancellotti e o vereador Eduardo Suplicy (PT-SP), no dia da missa de sétimo dia da morte do morador de rua Carlos Roberto Ribeiro da Silva (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Morte sofisticada

O termo usado pela irmã está ligado à tecnologia. Para Regina, a escalada de casos como o de Carlos Roberto tem a ver com a banalização de acontecimentos horripilantes promovida especialmente pelas redes sociais e pela mídia:

“Parece que é preciso vir sempre algo pior para que as pessoas se sensibilizem. A vida está desvalorizada. A do pobre, então. Hoje, aparece uma desgraça, a de amanhã é mais forte, e por aí vai. Tudo muito rapidamente, no ritmo imposto pela internet. Nosso presidente fala uma bobagem pela manhã, de tarde ele já fala outra, de noite, outra. No dia seguinte, recomeça. E fica tudo por isso mesmo”.

Albergue não é casa

Em 1977, encantada com os relatos de uma amiga, ela ingressou na Fraternidade das Oblatas de São Bento, ligada à Organização de Auxílio Frateno, fundada em 1955. Na fraternidade, ela prestava assistência sobretudo a mães solteiras e crianças de rua, que na época eram chamadas de “abandonadas”.

“O processo migratório no Brasil era intenso, a quantidade de gente nas ruas aumentava. Não havia nenhuma ação do governo direcionada para essas pessoas, a não ser no sentido de reconduzi-las ao estado de origem. Havia um albergue, do estado, mas quem não queria ir para lá ficava na rua.”

Nem convento, nem hábito

Para os leigos, a luta de Regina pelos direitos dos mais pobres, enquanto religiosa, pode parecer pouco ortodoxa. Ela nunca viveu em convento ou usou hábito, não é de liturgias e defende que as ações com os moradores de rua devem ir até eles. “Antes da igreja e da religião, eu sigo Jesus. Tanto que pode mudar o bispo, o prefeito, e a nossa fraternidade permanece a mesma nos princípios.”

No fim dos anos 1980, depois de uma análise das ações que a organização vinha desenvolvendo, chegou-se à conclusão de que o contexto social havia mudado bastante e que não faria sentido mantê-la. “Era um serviço que não tinha mais futuro. Para nascer o novo, seria preciso antes por fim àquele.” Ficou apenas um escritório e 12 irmãs que integravam uma “equipe de base”. Nesse “novo caminho”, Regina diz que a prioridade passou a ser as pessoas adultas que viviam no centro de SP. 

Convicta desde sempre

Nascida em Botucatu e criada em Assis, em uma família de oito irmãos, Regina Manoel logo decidiu dedicar sua vida à espiritualidade. “Primeiro, eu participava de um grupo de jovens no interior, depois vim para São Paulo e então me uni à organização”, lembra ela, que cursou serviço social.

Na entrevista abaixo, ela fala de sua devoção aos menos favorecidos, desde o início, da experiência com o morador de rua (antes e agora), da ausência de políticas públicas para lidar com o problema, e também de celibato, casamento, feminismo e identidade de gênero.

Universa — A senhora escolheu se dedicar à causa da população carente. Sempre como religiosa?

Irmã Regina —  A princípio, no interior, eu fazia parte de um grupo de espiritualistas. Era isso que eu buscava. A ordenação veio bem mais tarde. Quando cheguei em São Paulo, eu fui morar em um centro de espiritualidade, em Vargem Grande Paulista (região sudoeste), e trabalhava na secretaria do Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo. Uma das minhas companheiras de comunidade, que era assistente social na Organização de Auxilio Fraterno, me contava como as coisas aconteciam lá e eu fiquei muito interessada.

Um  dia, ela me falou que a organização precisava de uma pessoa para o trabalho diurno da ronda nas ruas, que até então era feito à noite. Eu me candidatei.  As irmãs disseram que não podiam fazer novas contratações, mas sabiam da necessidade de uma pessoa. Então, repartiram o salário de uma delas para me contratar. Nunca tinha visto um desprendimento assim. Pensei comigo: “É aqui !”

Universa — E como se tornou freira? Chegou a entrar para um convento?

Irmã Regina — Não, nunca gostei de uniforme. Aos poucos, me encantei com o modo de vida das irmãs e, no final de 1978, fui morar com elas para uma experiência. Em 1980 iniciei o noviciado, e em 1984 fiz meus primeiros votos. Foi quando me tornei freira. Em 1990, fiz minha profissão monástica.

Universa — Antes disso, nunca pensou em se casar e ter uma família?

Irmã Regina — Eu sempre achei que o casamento e o dia a dia doméstico restringia muito a vida das mulheres. Meus sonhos eram muito maiores. Eu queria ser professora no Amazonas, participar de ações no Brasil todo.

Universa — De certa forma, a senhora escolheu a independência. Considera-se feminista?

Irmã Regina — A gente (organização) nunca se rotula. Se você for fazer uma avaliação profunda da nossa postura de vida, nós somos feministas. Fizemos tudo sem ajuda de nenhum padre. O padre Julio promove a organização, mas não foi ele que a inventou.

Universa — A senhora acha que as mulheres, supostamente mais sensíveis, têm mais empatia em relação ao morador de rua?

Irmã Regina — Olha, essa coisa de “feminista”, eu não entro por aí. Se você me perguntar: “Regina, você quer celebrar missa?” Eu vou dizer: “Não! Eu nunca quis ser padre!”  Isso é uma escravidão. Celebrar todo dia uma missa, não, obrigada. Quero estar junto com o povo da rua, onde a gente reparte o pão de fato.

Universa — Para quem convive de perto com o morador em situação de rua, os títulos devem soar desimportantes. Mas o religioso tende a ser machista em relação a padres e freiras.

Irmã Regina –– O povo valoriza o padre. Tem isso inculcado. A gente não tira o valor deles (padres). Mas eles vão embora, a gente segue a nossa vida. Eu acho até que sou feminista, mas não careta, xiita, radical. Faço o possível para não ser machista. Trabalhei em uma casa abandonada na rua Tamandaré (centro de SP), que tinha de tudo. Eu me lembro de um casal cuja mulher batia no homem. Eu dizia: “Não posso concordar. Nem que o homem bata na mulher, nem que a mulher bata no homem. Eu sou contra a violência!” Eu nunca fiz diferença. Na minha concepção, todo mundo é igual, homem, mulher, gay, travesti..

Universa — Antes, não se falava em morador de rua homossexual. Como se não fosse possível ser as duas coisas. Havia preconceito?

Irmã Regina — .Da minha parte, nunca. Eu vou negar um prato de sopa porque a pessoa é travesti? Apenas acho que a sigla agora está enorme, LGBTQ. O que significa esse “Q”?

Universa —  Queer

Irmã Regina — Queer?

Universa — Ao pé da letra, a expressão em inglês designa alguém “esquisito”. Na gíria, pode significar “bicha”. Mas passou a ser usado em relação a pessoas que não se encaixam nos padrões de identidade de gênero ou orientação sexual determinados pela sociedade. Existe inclusive uma “teoria queer”, que defende que o gênero e a orientação sexual dos indivíduos não são uma determinação biológica, mas uma construção social.

Irmã Regina — Vou ficar sempre defasada com essas letrinhas…

Universa — A senhora é celibatária? 

Irmã Regina — Sim.

Universa — Sexo não faz falta?

Irmã Regina — É um detalhe. A afetividade, o carinho, a atenção com as pessoas que precisam da gente, tem muita coisa que pode nos dar prazer. E olha, são mais de 40 anos.

Universa — De lá para cá, o número de moradores de rua cresceu exponencialmente. O que eles mais precisam? 

Irmã Regina — De casa. Hoje, a política forte no município é o albergamento. É uma política equivocada. Não existe porta de saída nesse sistema. E albergue é emergência, não permanência. O que vai trazer resultado é moradia com acompanhamento.

Universa — E o que falta?

Irmã Regina — Trabalho. E empatia da população com histórias de perdas. Se você perguntar para um grupo que não tem acesso ao morador em situação de rua: “O que vocês acham que ele precisa?”, a resposta vai ser: “Ah, eles precisam de um albergue.” Agora, experimente fazer a mesma pergunta a um grupo de crianças, de qualquer classe social. Você vai ver que eles responderão: “Precisam de uma casa.”

A própria igreja não tem espaço para as pessoas da rua. Elas não podem entrar. Um dos programas que se quer implementar é que todas as igrejas de São Paulo possam oferecer água às pessoas. Chegamos a esse ponto. Antes, a gente dizia “não se nega água”, pois hoje se nega. Se você chega a um lugar e pede água, não dão. Qual é a coisa que você mais precisa e que ninguém dá? Tanto que tem muita gente que sai na rua hoje entregando garrafinha de água. Não é nem cobertor mais.

Universa — A Organização Auxílio Fraterno fechou as portas no começo dos anos 1980, e reabriu nos 1990. O que mudou? 

Irmã Regina — Pelo tempo de trabalho, pela nossa visão e pela proximidade com a rua, a gente acabou avançando muito nas missões. A grande conquista dessa mudança foi fazer com que as pessoas ganhassem voz; que começassem a discutir sua própria existência; que tomassem sua vida na mão e fizessem escolhas. Porque você não conscientiza ninguém. A pessoa se conscientiza.

Universa — Isso parece difícil para uma população tão carente de educação, de informação. Por vezes, o morador de rua parece reagir tão passivamente.

Irmã Regina — Pois é. “Deus quis assim, é o meu destino.” Só que aí você começa a fazer roda de conversa, e a pessoa vê na história do outro algo muito parecido com a dela própria. E diz: “Peraí, o que leva a gente a viver as mesmas dificuldades?” Então,  descobre-se que tem todo um sistema gerando aquilo. E ela começa a ter um senso crítico.  Se você conversa com os meninos do movimento, vai ver que eles têm uma consciência muito grande.

Universa — Mas o Brasil é muito grande.

Irmã Regina — Atualmente, os movimentos são nacionais. A gente tem feito encontros grandes. O movimento dos catadores de lixo, por exemplo, nasceu conosco, na baixada do Glicério, e hoje eles fazem capacitação no Haiti. Discutem  política reversa com a Coca-Cola. Do outro lado, a Prefeitura de São Paulo não apoia. Você entende a controvérsia?

Universa — Em relação ao crack, a senhora acha que as políticas públicas falharam?

Irmã Regina — Não, é pior. Elas praticamente não existiram. Isso fez com que o problema fosse longe demais. Agora, os métodos utilizados no enfrentamento do problema não se adaptam à realidade. Não adianta querer resolver as cracolândias com violência, confinamento, nem com religião. A droga não cai do céu. As famílias e os dependentes que buscam tratamento não encontram. Cada governo quer criar um programa e colocar a sua marca. O único em que vi um pouco de resultado foi o “Braços Abertos” (multi- secretarial, com adesão e redução de danos). Esse é um assunto que precisa ser debatido seriamente, e merece uma implementação firme de programas sem slogans.

 

O caso Carlos Roberto

*Em relação ao assassino de Carlos Alberto Vieira da Silva, tanto os moradores de rua quanto o padre Lancellotti e Regina desconfiam da história contada pelo homem que confessou o crime, Flausino Cândido Filho, 49 anos. Flausino, que também é morador de rua, disse à polícia que havia sacado R$ 10 mil reais dois dias antes, e que só Carlos Roberto sabia disso — portanto, o dinheiro estaria com ele. Padre Julio: “Se o criminoso ateou fogo no Carlos Alberto por causa dos R$ 10 mil, ele acabou queimando o dinheiro também. Não faz sentido.”

Para o padre, “a polícia erra ao divulgar tão rapidamente uma versão do crime”. “Eles querem dar uma satisfação imediata à sociedade. E a culpa, no fim, acaba sendo sempre do defunto.”

Os delegados que estavam apurando o caso afirmaram a princípio que história contada por Cândido ainda precisava ser esclarecida. Procurada, a secretaria da Segurança Pública de São Paulo disse que não poderia informar muito sobre o caso, para não atrapalhar a investigação. Até o fechamento deste texto, não comunicou nenhum avanço.

 

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Mãe de 2 filhas, ela deixou marido, casou com mulher e agora é homem trans http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2020/01/12/mae-de-2-filhas-ela-deixou-marido-casou-com-mulher-e-agora-e-homem-trans/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2020/01/12/mae-de-2-filhas-ela-deixou-marido-casou-com-mulher-e-agora-e-homem-trans/#respond Sun, 12 Jan 2020 07:00:53 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=23939 Aos 12 anos, quando teve uma paixonite de criança por uma vizinha de rua, o gerente de loja trans William Oliveira, hoje com 36 anos, nunca tinha ouvido falar na palavra “lésbica”. Única filha mulher em uma família muito religiosa, de quatro irmãos, a menina intuía que aquele comportamento era condenável, mas não sabia por quê.

Pai motorista, mãe dona de casa, Will conta que sentia atração por meninas, mas de uma maneira muito inocente. “A gente não recebia nenhuma informação a respeito de sexo na escola, e em casa não havia a menor possibilidade de conversar sobre o assunto. Nem se falava nisso”, lembra ele, que nasceu mulher, casou, teve duas filhas e fez a transição para o sexo masculino há cerca três anos. Hoje, mantém os cabelos muito curtos, cultiva barba, usa roupas folgadas, boné e alargadores de orelha. Aparenta muito menos idade, talvez porque faça, nas palavras dele, o estilo “moleque”.

(Para facilitar o relato, o blog pede licença para tratar Will, quando vivia como mulher, no feminino).

Veja também: 

Aos 11 anos, na Copa do Mundo de 1994; e no ano passado (Fotos: Arquivo Pessoal)

É isso, e pronto

O amor de infância acabou sem que ninguém jamais soubesse. Com 13 para 14 anos, a mãe de Will tentou forçá-la a namorar um menino da igreja. Um mês de desespero. “Eu chorava diariamente, sem saber o que fazer.” Era só o início..

Até chegar ao entendimento do que é identidade de gênero — um termo ainda mais remoto do que “lésbica” — o caminho foi longo. Incluiu um casamento de 15 anos, a maternidade e o firme propósito de constituir uma família, atribuição que ela acreditava ser de toda mulher. “Minha mãe falava ‘é isso’, e pronto, ‘era aquilo’.”

Casal invertido

O marido não era o menino da igreja, mas um primo por afinidade que chegou do nordeste para tentar a vida em São Paulo. Sem saber, os dois formavam algo próximo do que hoje chamam de “casal invertido“: ela era uma menina com jeito de garoto, e ele, um rapaz afeminado. Pelo menos, era o que se comentava.

Mas a identidade de gênero e as preferências sexuais dos dois não tinham a menor relevância para a mãe da menina, que empurrou impiedosamente a filha para os braços do recém-chegado. Iniciou-se um namoro resignado, letárgico.

Nem um talher

Um dia, o irmão de Will, que morava com ela na casa de uma tia, contou para os pais que o casal de namorados andava dormindo na mesma cama. A mãe aproveitou o ensejo para forjar um escândalo, dizer que homem que dormisse com a filha dela tinha que assumir um compromisso, e os obrigou a se casarem. Will estava com 15 anos, e o namorado, 18. Indignados, eles se casaram, mas se afastaram da família dela: “Eu havia perdido a virgindade, mas não estava grávida. A gente não tinha um talher, nada.”

E como é fazer sexo com alguém por quem não se sente atração?

“A gente raramente fazia, e, quando acontecia, era fisiológico. Eu via o casamento como a oportunidade de construir alguma coisa. E assumi aquela situação completamente, como se não houvesse nada em volta.”

Durante todo esse tempo, nunca pensava em mulheres?

“Sentia atração, mas era algo muito distante, nem passava pela minha cabeça consumar qualquer coisa.”

Sem alternativa

Aos 15 anos, Will engravidou da filha mais velha (que preferiu não participar da matéria).  “Fiquei triste, não sei dizer exatamente como. Eu tinha planos de terminar os estudos, de trabalhar, de ter as minhas coisas.” Ele conta que não tomava anticoncepcional, “para não engordar”.

Nessa ocasião, a mãe da grávida se reaproximou do casal, por conta da chegada do bebê, e levou a filha pela primeira vez a um ginecologista. “Eu não fazia ideia, por exemplo, de que poderia ter escolhido interromper a gravidez. Faltou alguém que me orientasse, uma tia, um parente, que dissesse: ‘A vida não é assim, você pode tomar suas próprias decisões…’.  Eu era menor, continuava dependente, minha mãe ia me buscar no hospital quando tive as meninas…”

Aos 15 anos, grávida da primeira filha (Foto: Arquivo Pessoal)

Bofe x Mulherão

Um ano depois, ela engravidou da segunda filha, Estéphane. “Aí, eu chorei.” Embora já estivesse informada sobre a alternativa do aborto e sua viabilidade, ela “tinha medo de morrer no procedimento”.

Ao mesmo tempo em que reconhece que nunca teve instinto maternal, Will conta que a experiência de ser mãe  foi “única”. “É algo que os homens nunca vão entender. Uma ligação muito forte, inexplicável.”

Ele fala com adoração das filhas. Mostra fotos, conta que estão sempre juntos e que elas o enchem de orgulho: uma estuda publicidade, a outra migrou do curso de psicologia para o de direito. As duas são lésbicas. “Ambas estão namorando”, diz.

As duas filhas (Foto: Arquivo Pessoal)

Descoberta aos 9

As meninas se assumiram antes de Will, na pré-adolescência. “Eu me descobri [lésbica] com nove anos, em 2009″, lembra Estéphane, 19.  “Falei só pra minha irmã. Disse a ela que me sentia diferente das outras meninas, e que gostava muito de uma, em especial, da igreja. Porém, aquilo de ‘homossexuais vão para o inferno’ me assombrava, e então eu me forcei a namorar meninos. Mas quando os beijava, sentia nojo.”

Estéphane não contou logo para os pais, porque receava que eles reagissem mal. “Quando minha mãe (Will) se assumiu, em 2011, tive mais coragem. Mas só falei mesmo pra todo mundo alguns meses antes de fazer 15 anos.”

Estéphane (de óculos) e a mulher dela, Elisa (Foto: Arquivo Pessoal)

Pão quentinho

O pivô do fim do casamento dos pais de Estéphane foi a primeira paixão de sua mãe na fase adulta, bem antes da transição. A mulher era frequentadora assídua da padaria onde o pai de Estéphane trabalha até hoje como gerente e confeiteiro. Will: “Eu ficava no balcão, ajudando, e essa moça me atraía muito. Eu não entendia direito o que estava acontecendo, só sabia que era bom. A moça era casada e tinha dois filhos, e eu, muito inocente, mantinha aquilo para mim, platonicamente. Sequer imaginava a possibilidade de ela ser casada com outra mulher...”

Pois é. Isso foi se revelando aos poucos. As visitas à padaria se tornaram cada vez mais frequentes e, aparentemente, a experiente visitante estava gostando de atiçar os instintos mais primitivos da mãe de família resignada.

Um dia, tomada por um desejo incontido, a balconista chamou a mulher que estava tirando seu sono para ser sua amiga no Facebook. Ela topou, e aproveitou para mandar uma indireta qualquer. Dois ou três dias depois, passou na padaria de carro, chamou a outra para dar uma volta, e “rolou”. Àquela altura, Will estava “completamente apaixonada”. “Não pensava em mais nada.”

Duplamente proibido

Ambas deixaram seus lares para assumir o amor, que, para Will enquanto mãe de família, era duplamente proibido. Como ele conta hoje, “foi algo que me dominou completamente”. “Não tinha como controlar. Percebi depois que não tinha jeito, estava na hora de viver aquilo.”

Na sequência, Estéphane e Tiffany deixaram os respectivos armários, e, por último, o pai delas se assumiu gay.

Baladeiro por um tempo

Cerca de um ano e meio depois, quando terminou o relacionamento com a moça da padaria, Will ainda não havia feito a transição. Ele conta que, depois da separação, viveu tudo o que havia reprimido na adolescência e juventude. “Saí muito, conheci muita gente, beijei muito”, lembra ele, muito simpático, sem nenhuma afetação de cafajestagem.

Em uma praça que era ponto de encontro de pessoas LGBT no Tatuapé, na zona leste de São Paulo, conheceu a designer de sobrancelhas Samanda Morais, 28 anos. Na época, seu cabelo era raspado de um lado e tingido de azul do outro.

Samanda: “Ele era uma lésbica de atitudes diferentes. Usava roupas femininas, mas eu não enxergava uma mulher nele. Nem um homem. Só sei que eu gostava daquilo.”

Com Samanda, em um domingo na avenida Paulista (Foto: Arquivo Pessoal)

Nada muito simples

Naquela ocasião, Samanda tinha 23 anos e ainda não havia contado a ninguém na família sobre sua orientação sexual. Diz que isso foi “muito difícil” (“minha mãe me expulsou de casa”), mas nada comparado ao momento em que, depois de dois anos de casamento, a mulher (Will) comunicou a ela a intenção de fazer a transição de gênero.

“Foi muita coisa para a minha cabeça. Eu não aceitei e pedi a separação. Dos seis meses em que passamos longe um do outro, cinco eu fiquei com um homem cis (identificado com o gênero atribuído a ele no nascimento).”

O relacionamento dos dois já dura cinco anos, sendo os três últimos com um homem trans: “Era outra pessoa. Aquela do passado tinha morrido. Eu vi um homem.”

Samanda: “Aquela pessoa do passado tinha morrido, eu vi um homem.” (Foto: Arquivo Pessoal)

A mesma outra pessoa

E como foi acompanhar a transição? “Na verdade, a ‘outra pessoa’ era ‘a mesma’, no jeito de me tratar.”

Nada mudou? “Quando perguntavam sobre ele, eu tinha vergonha de falar, porque eu não era assumida e ficava com homem cis também. Para todos os efeitos, eu estava experimentando mulher. Mas o engraçado é que eu não preferia um homem ou uma mulher. Eu preferia aquela ‘mulher’, que era o Will.”

Pai Will

Por sua vez, Estéphane conta que levou um tempo para se habituar a chamar a mãe de pai. “Até hoje confundo. Ainda não tenho o hábito, por conta do meu outro pai. Mas chamo de ‘Will’ tranquilamente.”

Pergunto se ela acha que o fato de ser lésbica pode ter facilitado a aceitar a transição da mãe. “Se fosse heterossexual, daria na mesma. Desde criança, tenho a mente muito aberta, e aprendi com meus pais a respeitar as pessoas como são.”

Pessoalmente, Estéphane acredita que não faria a transição de gênero. Acha também pouco provável se atrair por um homem trans. “Sempre gostei de mulheres bem femininas.”

Cara a cara com Estéphane (Foto: Arquivo Pessoal)

Pela primeira vez, as duas famílias passaram o Natal juntos. Will e a mulher; as duas filhas com as respectivas; e o pai delas com o namorado. “Foi um presente para todos nós”, comemora Will.

 

 

 

 

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Dramaturga Leilah Assumpção, 76: “Demorei pra ‘dar’, mas depois, nossa!” http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2020/01/08/dramaturga-leilah-assumpcao-76-demorei-pra-dar-mas-depois-nossa/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2020/01/08/dramaturga-leilah-assumpcao-76-demorei-pra-dar-mas-depois-nossa/#respond Wed, 08 Jan 2020 07:00:13 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=23810 Muito festejada desde o fim dos anos 1960 por peças que abordam “questões femininas”, a dramaturga Leilah Assumpção, 76 anos, pratica até hoje uma espécie de feminismo vintage. Leve. Nada de competição com arquétipos masculinos, raiva ou ressentimento. “O feminismo de hoje exclui os homens. O nosso, ao contrário, incluía. A gente não tinha necessidade de provar que era igual a eles. Nós queríamos a igualdade de oportunidades justamente para poder usufruir melhor as diferenças.”

Na época, o simples uso dos verbos “dar” e “trepar” já era considerado um ato libertário. As duas expressões, quando ditas por desbravadoras remanescentes do “universo da mulher”, como Leilah, ainda soam como peraltice de criança que acabou de aprender um palavrão.

Ao citar, por exemplo, o tempo em que morou na rua General Jardim, na região central de São Paulo, na juventude, ela diz: “Em dez anos, tive muitos casos maravilhosos! Trepei tanto naquele apartamento!”. A General Jardim fica próxima ao prédio onde funcionava a faculdade de filosofia ciências e letras da USP, na Consolação, centro de SP, palco de resistência do movimento estudantil contra o regime militar. O lugar tinha um apelo especialmente afrodisíaco para uma gama de intelectuais de esquerda, hippies estilizados e contraculturetes. Leilah, que era alta, linda e curiosa, cursava pedagogia na USP. Uma personagem adrede preparada para aquele instante…

Veja também: 

Na década de 1970, como ela diz, “feliz da vida”(Arquivo Pessoal)

Manequim virgem

Enquanto se engajava, ela trabalhou durante cinco anos como manequim (o equivalente à modelo de hoje), período em que permaneceu sexualmente invicta. No ambiente da passarela, diz, “isso era chiquérrimo”. “O [estilista] Dener se referia a mim como a ‘manequim virgem’.” Segundo conta, naquele momento ela “não tinha interesse nenhum em sair com os caras”. “Quando acabavam os desfiles, ia todo mundo pra boate, eu voltava pra casa, para escrever. Ninguém acreditava, achavam que eu escondia um caso secreto.”

Seu sonho era fazer parte do efervescente grupo do Teatro Oficina, liderado pelo ator, diretor e encenador José Celso Martinez Corrêa. Em pouco tempo, ela conseguiu se aproximar deles e, logo, estava tendo aulas com o diretor ucraniano Eugênio Kusnet, conhecido por apresentar a seus alunos o método Stanislavski, super em voga época; conheceu também o ator e diretor Renato Borghi, e todos que estavam embaixo daquele guarda-chuva. Passou a frequentar as coxias, os ensaios e os espetáculos: “Eu amava aquilo tudo”, diz. Na recém-lançada autobiografia “Memórias Sinceras” (Sa Editora), que escreveu em cinco anos, a partir do nascimento de seu primeiro neto, Otto, em 2014, Leilah conta que namorou Zé Celso e, por um motivo que é “segredo absoluto”, ele lhe aplicou um tapa no rosto.

Ela diz que foi “bom”: “O Zé Celso era tímido, eu consegui arrancar uma ação dele. Não significa que eu gosto de apanhar. Mas aquele tapa foi bem dado.” (Imagina-se o que uma feminista da safra millennial diria de uma declaração dessa. Para uma representante do movimento, hoje, não existe a menor possibilidade de considerar um tapa no rosto, aplicado por um homem, “bem dado”).

Com Dener, quando ainda era uma “manequim virgem”: “Chiquérrimo!” (Arquivo Pessoal)

Fala baixo…

Enquanto desfilava, Leilah reunia as ideias embrionárias de peças que viriam a ser sucessos premiadíssimos. Usava uma máquina de escrever Remington comprada com o primeiro salário como desenhista no ateliê de Madame Boriska –famosa modista da época.

Em 1969, aos 26 anos, ela conseguiu que seu namorado na ocasião, o diretor Clóvis Bueno, lesse para Marília Pêra a peça “Fala Baixo Senão Eu Grito”. Conta a história de Mariazinha, uma funcionária pública solteirona e infantilizada que mora em um pensionato para mulheres e é surpreendida pela entrada de um ladrão em seu quarto. Na conversa entre os dois, Mariazinha sofre uma espécie de transmutação onírica e passa a experimentar desejos antes reprimidos e uma sensação de liberdade jamais vivida. Cheio de metáforas, o texto aborda de forma delicada e, ao mesmo tempo, dinâmica, o machismo, a emancipação feminina, os dilemas de um contingente substancial de mulheres da época. 

Marília Pêra gostou, arrumou patrocínio com o governo e montou o espetáculo. Considerada por Leilah sua estreia oficial no teatro, a montagem rendeu o prestigiado prêmio Molière para ela, Marília e Clóvis.  “Fui respeitada logo de cara”, lembra. “Eu também me respeitei.” Talvez por isso ela lembre com bom humor a reação da produtora cultural e deputada Ruth Escobar (1935-2017), quando soube da montagem do espetáculo. “Ela disse: ‘A Marília vai fazer a peça da manequim’. Depois, nos tornamos grandes amigas.”

Desarrumação estudada

Apesar do prestígio, Leilah conta que continuou enfrentando preconceito de pessoas que tentavam diminuí-la em função de sua carreira pregressa, na moda. “Ninguém acreditava que uma manequim poderia escrever tão bem. Eu até passei a andar meio desarrumada pra ver se me enxergavam de outro jeito.”

Lembrada especialmente por “Fala Baixo..”, que ganhou inúmeras montagens nos últimos 40 anos, Leilah depois escreveu mais de 20 peças. As mais importantes são “Roda Cor de Roda” (1975), também montada no Brasil e no exterior, e “Intimidade Indecente” (2001), que fala dos desencontros de um casal que está se separando. Em sua primeira versão, foi levada ao palco por Irene Ravache e Marcos Caruso. Em cartaz atualmente em Lisboa, com Caruso e Vera Holtz, o espetáculo atrai mil pessoas por sessão: “É um sucesso absoluto”, orgulha-se Leilah.

Brigadeiro x baba de moça

O texto de “Roda” fala de uma mulher que descobre que foi traída, manda o marido embora e monta um bordel em casa.  Escrito em plena ditadura militar, o espetáculo sofreu cortes e obrigou Leilah a se deslocar até Brasília mais de uma vez. Ao contrário do que se pode imaginar, ela não ficava apreensiva quando precisava conversar com os censores. Achava até “divertido”.

“Eles eram uns velhinhos meio obtusos, impossível não achar graça”, diz. “Teve um que encasquetou com o nome do doce ‘brigadeiro’, porque achou que fazia alusão desrespeitosa ao posto [das Forças Armadas]. Eu disse que poderia trocar por ‘baba de moça’, e assim ele liberou o texto.”

Sexo e ácido

O feminismo exercido por uma leva de intelectuais da época admitia, em sua “luta”,  a aliança com os homens. “A gente tinha um inimigo comum, a ditadura”, lembra Leilah. Isso ensejava noitadas intermináveis no restaurante Gigetto, no centro de São Paulo, ponto de encontro de jornalistas, escritores, do “povo do teatro”, e cineastas, músicos, artistas plásticos…  Falava-se de grandes textos, da revolução bolchevique, do movimento antropofágico, dos hippies, de ácido lisérgico, e, claro, da liberação sexual.

A essa altura, já não era mais chiquérrimo ser virgem. Leilah: “Imagina! Quanto mais você desse, mais era valorizada no teatro. Tinha de ser boa de cama!”

Estágio em Londres

Os dilemas femininos abordados por Leilah em suas peças –e aplaudidos por multidões de mulheres que as assistiam– estavam mais associados à insatisfação existencial de uma classe média urbana, do que a questões de cor, raça, gênero e  orientação sexual –como hoje.

Ainda não havia algo da dimensão (globalizada) do movimento #metoo, nem um evento com a repercussão que teve nas mídias sociais o atentado à vereadora carioca Marielle Franco (PSOL-RJ), que era negra e lésbica, muito menos se falava na “questão de identidade de gênero”.

Na turma de Leilah, o aspirante a rebelde antiestabilishment precisava viver in loco o Swinging London, usar Mary Quant, ouvir Pink Floyd e zanzar pela King’s Road. Na segunda metade dos anos 1960 e começo dos 70, Londres era considerada a cidade mais vibrante do mundo, o lugar onde tudo acontecia. “Ácido eu tinha medo”, diz Leilah, e explica a lacuna.  “Achava que não voltaria da viagem.”

Leilah com o escritor e diretor Antônio Bivar, em Londres, nos 1970 (Arquivo Pessoal)

Marido banqueiro

Um dia, no início da década de 1980, Leilah se casou com um banqueiro. “É por isso que eu vivo aqui”, diz ela, referindo-se a um casarão no nobre Jardim Europa, na zona oeste de São Paulo. Walter Appel é fã de bossa nova, boêmio e apaixonado pelo ambiente cultural: “Ele investia nas minhas coisas”, diz ela, sem rodeios.

Os dois ficaram juntos durante 20 anos, estão separados há 20, mas ainda são vizinhos. Tiveram uma filha, Camila, hoje com 37 anos, que se tornou “a principal redatora do programa do Bial”. A mãe se orgulha do talento de Camila, embora afirme que o trabalho das duas, como escritoras, não tem nada a ver: “Ela [Camila] é séria. Linda e séria. Quando criança, dizia que queria ser presidente da República.”

Com o ex-marido, Walter Appel, pai de sua filha, Camila: 20 anos casados; há 20 separados (Arquivo Pessoal)

Lobo solitário

Pelas tantas, Leilah e uma turma de feministas elitizadas se juntaram em um grupo informal batizado FNM (alusão à potência de um caminhão fabricado na época, conhecido como FêNêMê, que elas transformaram em Frente Nacional de Mulheres). Faziam parte da FNM Ruth Escobar, Carmem Barrozo, Eva Bly, Marta Suplicy e Ruth Cardoso: “A gente se reunia sempre. A Marta foi na minha noite de autógrafos (da autobiografia)”, diz Leilah, que hoje passa a maior parte do tempo em casa e se considera um “lobo solitário”.

Em 2013, quando contraiu febre herpética e precisou se submeter a intervenções cirúrgicas e tomar medicamentos que deixaram seu rosto, nas palavras dela,  “transfigurado”, Leilah se afastou da mídia: “Eu tinha sido uma manequim requisitada, era bonita quando jovem, foi complicado”, diz. Mas então, como sempre, usou o humor para transformar a experiência difícil em uma comédia. “Dias de Felicidade” estreou em 2015. “É uma história de amor. Eu sou muito resiliente”, diz.

Na noite de autógrafos de Memórias Sinceras (Foto”Zanone Fraissat/Folha Imagem)

Tudo famoso

Na autobiografia, Leilah cita um impressionante elenco de celebridades. Além dos nomes já mencionados acima, ela conta histórias suas com Odete Lara, Regina Duarte, Sonia Braga, Lilia Cabral, Gianfrancesco Guarnieri, Antunes Filho, Antônio Cândido, Mario Lago, Samuel Wainer, José Dirceu, Vânia Toledo, Carlos e Kate Lyra, Dener, Clodovil e muitos, muitos outros.

A forma como fala das pessoas, sempre precedidas por adjetivos (“o grande dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho”; “Elis Regina, a cantora maior”; “o grande ator Paulo Autran”; “a famosa atriz e produtora feminista Ruth Escobar”), faz parecer que, mesmo consagrada, ela os admirava como se não fizesse parte daquele meio.  “Engraçado, nunca tinha visto por esse ângulo”, diz.

Entre os famosos: Ruth Cardoso, Carlos Alberto Riccelli, John Herbert, Leilah, Fafá de Belém, Nélida Piñon, Mario Soares (presidente português à época), Fernando Henrique Cardoso, Bruna Lombardi, Bibi Ferreira, Regina Duarte, Lygia Fagundes Telles, Ruth Escobar e Irene Ravache (Arquivo Pessoal)

Falou e disse

Como “censura” era uma palavra (ainda mais) repudiada, Leilah fez das frases de efeito sua marca registrada. Em uma entrevista já nos anos 2000, ela reconheceu: “Apesar de algo romântica e conservadora, não resta dúvida de que minha dramaturgia é de impacto, não consigo ficar no ramerrame. Não brinco, quando tenho de falar, falo, sem rodeios”.

Doa a quem doer, a alegada sinceridade de Leilah prende o leitor de suas memórias. Ela é o tipo de dramaturga que escreve como fala. Embora o livro não venha com a função “áudio”, é possível ouvi-la quando se lêem os saborosos relatos. Ela costuma dizer que escreve assim, especialmente para teatro, porque aprendeu assistindo.

Digo que, no livro, quando ela usa um palavrão, quase pede desculpas. Ela afirma que não se tornou libertária de uma hora para outra, que “foi um processo”, e então cita de novo, meio que gratuitamente, o tal verbo chave: “Demorei para dar. Mas depois, nossa! Namorei muito!” Demorou quanto? “Fiquei virgem até os 22.”

E aí, acabou?

Nascida em Botucatu, a cerca de 250 km de São Paulo, Leilah morou nas vizinhas São João da Boa Vista e Espírito Santo do Pinhal. Entre entediada e cansada, refestelada no sofá da sala de estar do casarão, ela diz que não lembra a quantas horas de São Paulo fica Botucatu: “Nem sei mais”, diz, com um acento de preguiça.

E, então, pouco depois de uma inspirada profunda, ela se enrola em um pano estampado, tipo indiano, e encerra o assunto no melhor estilo “cansei de brincar disso”, como faz várias vezes no livro. E pergunta:  “Vai demorar muito ainda?”

Erramos: diferentemente do publicado, a pessoa anteriormente identificada em uma das fotos como mulher do ex-presidente português Mario Soares é a escritora brasileira Nélida Piñon

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Manicure trans cria grife Surra de Unha em resposta artística à agressão http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2020/01/03/manicure-trans-cria-grife-surra-de-unha-em-resposta-artistica-a-agressao/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2020/01/03/manicure-trans-cria-grife-surra-de-unha-em-resposta-artistica-a-agressao/#respond Fri, 03 Jan 2020 07:00:13 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=23740 A manicure, artista plástica e poeta carioca Ana Matheus Abbade, 23 anos, não se considera totalmente identificada com o gênero masculino nem com o feminino. Caso se identificasse com um dos dois, ela seria classificada na nomenclatura moderna como uma pessoa “binária”.  Ana Matheus diz que prefere assumir uma postura “não binária”; diz que o faz como “prática necessária”. Seria um compromisso político.

“É um exercício, um trato de ética”, explica. “No momento que eu me assumo como não binária, eu me entendo como alguém que possui diversas narrativas que atravessam a minha forma de estar no mundo.”

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Barba e bustiê

Com 1,90m de altura e 70kg, barbuda, cabelos descoloridos, Ana Matheus chega à entrevista vestindo uma calça estilo bombacha –traje típico do gaúcho binário masculino do campo–, um bustiê de lurex, tênis azul-marinho e boné com o nome de sua grife, a Surra de Unha.

Surra?

Ana Matheus explica que usou o termo em uma elaboração poética a respeito de discriminação, preconceito e violência. Ela foi vítima de uma agressão, em 2015, no Rio, e passou por outras, em São Paulo, mas não quer falar mais delas. “Os ataques físicos vêm de pessoas que a gente já espera, são sempre as mesmas. Hoje, eu me interesso pela violência no espaço íntimo. Silenciosa. Aquela que acontece no trabalho, ou com um vizinho no elevador, com as gays heterocentristas, até com a amiga hétero que, toda vez que te encontra, te espetaculariza: ‘Nossa, como você tá linda!’. Eu acho que cada pessoa tem de se perguntar o quão violenta ela é.”

A manicure em performance (Ana Matheus Abbade/Instagram)

Nascida em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, Ana Matheus foi criada na vizinha Itaboraí e diz que sua transição começou ao nascer: “É a minha narrativa a meu respeito. Cada um tem a sua. No meu entendimento, a transição acontece quando e como a pessoa percebe o entendimento dela com o próprio corpo e a realidade em volta.  A família, os amigos, com quem a pessoa janta, dorme, toma café da manhã, por quem ela sente amor”.

Abaixo, trechos da entrevista com ela.

Universa — Você batizou sua grife de Surra de Unha. Isso tem algo a ver com o fato de você ter sofrido agressão física? Como você associa sua arte, suas unhas e sua postura política?

Ana Matheus — O fazer da arte é pautado na vivência. Quando eu trago a escrita, ou a manicure, eu tento associar sistemas sociais, que são econômicos, práticos, tecnológicos, ao fazer artístico. A unha entra como signo, como matéria, como assunto, como palavra e como uma prática que eu tenho para produzir a minha renda (financeira)Eu faço um evento que se chama manicure show. O atendimento acontece junto com uma performance de dançarinos, teatro, balé.

Universa — Suas unhas têm tamanhos e formatos diversos. Você atribui algum significado a isso?

Ana Matheus —  Não é sobre um tratado estético. É célula do meu corpo nascendo. Uma é maior que a outra, porque cada uma cresce de um jeito. As mulheres cortam para ficar tudo igual, o que não é natural.

 Universa — Sua clientela, então, é restrita?

Ana Matheus —  Sim, porque eu não ofereço um serviço expresso, de fast entrega. Desde 2015, eu estudo cosméticos que anabolizam as unhas. Eu crio fórmulas para cada atendimento, cada cliente, com uma liga específica de algumas matérias vegetais.

Unhas de tamanhos e formatos diferentes: “Não é um tratado estético. É célula do meu corpo nascendo; cada uma nasce de um jeito.” (Foto:Ana Matheus Abbade/Instagram)

Universa — Você diz que se considera uma pessoa trans desde que nasceu.

Ana Matheus —  Sim. Durante os primeiros anos, eu fui desconectado dessa lembrança por um processo promovido pela educação, pela escola, pelo convívio com as outras crianças. Isso foi apagado. Então, com 17 anos, 18, eu decido rever algumas escolhas, não porque eu quisesse experimentar coisas novas, mas porque eu comecei a me conectar com o que eu era. A transição vem do autoconhecimento. No meu caso, não se trata apenas de uma montação (termo usado para designar um figurino propositalmente exagerado).

Universa — Como sua família reagiu a sua transição?

Ana Matheus — Minha família é incrível (pai, mãe e uma irmã). Ninguém é obrigado a ser legal. A realidade (da discriminação, do preconceito) é igual pra todo mundo. A diferença é como você dialoga com aquilo que não é legal. Isso pode se transformar em algo legal para eles. Hoje minha mãe me admira, me respeita. Eu moro com a minha irmã.

Universa — Nem todas as travestis possuem um discurso elaborado como o seu – estatísticas apontam que mais do que 90% delas acabam enveredando para a prostituição, porque não tiveram oportunidade de estudar, nem de conseguir emprego por causa da discriminação.

Ana Matheus — Mas aí é o lugar de conhecimento que você tem acerca das travestis. É um problema seu, não meu.

Universa — Meu não, das estatísticas. 

Ana Matheus — Você tem que entender a diversidade do que eu tô falando. Todo mundo, quando vai conversar com uma travesti, é sempre sob essa perspectiva, a de que as trans não sabem pensar. Nem todas são iguais. Assim como nem toda gay é igual. Você vai chegar em uma gay que está em frente a (sauna) Chilli Peppers, ela não vai saber ligar os pontos. Cérebro corroído de droga, esperma, falocentrismo. (Quando diz gay, Ana Matheus se refere a homossexuais binários, identificados com o gênero atribuído a eles ao nascer –masculino–, de acordo com critérios construídos socialmente).

Universa — Falocentrismo.

Ana Matheus — É o que corrói a maneira de viver das pessoas. A necessidade de elas terem o falo para poder organizar a forma de tratamento. Se essa pessoa tem falo, eu trato de um jeito; se não, de outro. 

Universa — Por que você fala “as” gays?

Ana Matheus — É um lugar afetivo para eu gostar delas. Se não uso isso, aí é que eu não gosto mesmo. Viro homofóbica.

Universa — É preciso ser não binário para chegar a esse entendimento de identidade de gênero?

Ana Matheus — Veja bem, ninguém é não binário. É uma prática. Um processo. Quase de análise.

Universa — É um exercício então, mais do que uma não-identificação com nenhum dos gêneros?

Ana Matheus — Quando você não participa desse mundo binário, em que todos os códigos estão garantidos, você é levado a pensar, a se posicionar, de forma ativa. De cada parte sua no mundo.

Universa — Para algumas pessoas, a posição do não binário parece mais confortável. Existirá sempre um plano B, em uma situação de apuro.

Ana Matheus — Essa é a forma do mundo binário perceber aquilo que ele não alcança. Porque a pessoa (no mundo binário) já assume um lugar estabelecido, confortável, em que ela não precisa se colocar. Ela é cis (identificada com o gênero atribuído no nascimento), sexista, branca, e, assim, não precisa pensar a realidade social. Vai se adaptar a uma imagem que as pessoas têm dela, muito mais do que entender, de fato, qual a função dela no mundo.

Universa — Existe a possibilidade de a escolha da pessoa coincidir com o que se espera dela. De ela, sem esforço, se encaixar no parâmetro considerado padrão.

Ana Matheus — Ainda assim é uma questão de escolha. Você não vai conseguir dormir, acordar, tomar café, se não for uma escolha sua.

Universa — Uma escolha, então, nunca é confortável?

Ana Matheus — O conforto vem do privilégio. A pessoa não escolheu exatamente, foi algo com o qual ela se beneficiou.

Universa —  Há pessoas que não vão, como você, rever as escolhas originais. Preferem, em nome da tranquilidade, evitar o autoconhecimento.

Ana Matheus — Não é à toa que o Brasil é o país onde mais se vende Rivotril (medicamento anticonvulsivante com efeito tranquilizante).

Universa — Você é uma travesti que exerce a não-binaridade. Isso restringe muito a sua prática sexual? 

Ana Matheus — Não. Se, por exemplo, uma pessoa quer transar comigo para satisfazer uma curiosidade antropológica, ou só consegue se for escondido, mas ainda assim eu estiver a fim, eu vou. De uma maneira geral, a pratica sexual é chata. Mas quando a energia combina, eu relevo qualquer ideologia.

No centro de São Paulo (Foto: Ana Matheus Abbade/Instagram)

Universa — Você prefere não falar das agressões físicas.

Ana Matheus — A minha história é igual a de tantas outras…A travesti que foi agredida na rua com um soco no olho e não se sabe por que, nem quem foi.  A agressão é diária. Física, moral. Hoje, eu fui ao Sesc, o boy (segurança) me mandou colocar uma blusa (por cima do bustiê). Eu perguntei: “Você vai comprar uma?” E ele: “Se você acha que pode entrar assim, entra”. Eu disse: “Então, você já não tinha que ter perguntado.” Eu me impus uma tarefa ultimamente: a reversão do que é a violência pra mim. Hoje, eu me interesso pela violência no espaço íntimo. Silenciosa. 

Universa — Por exemplo?

Ana Matheus — Ao selecionar um candidato para o cargo em uma empresa, o sistema binário precisa separar o corpo em que ele confia, do que ele não confia. Isso é que eu chamo de lugar de privilégio. Um corpo como o meu, quando passa, ele pode ser constrangido, ou espetacularizado, vulgarizado, visto com desconfiança.

Universa — Você conta com a possibilidade de causar impressões positivas?

Ana Matheus — Queria contar.

 Universa — Aparentemente, a sua narrativa só existe a partir da classificação binária de gênero.  Isso não a atrapalha no entendimento da sua própria identidade?

Ana Matheus — Se eu me desvencilho do pacto que as pessoas têm para se comunicar em silêncio, eu sou obrigada a organizar novas narrativas, diversas vezes.

Universa — Até que ponto você faz isso em função dos outros? 

Ana Matheus — Uma coisa é você pensar em função de alguém, outra é ter essa pessoa como centro de um pensamento universal. Eu tenho necessidade de pensar a respeito daquilo que a sociedade apagou o tempo inteiro na narrativa dessa cidade, por exemplo. Uma travesti tem que pensar o que eu penso. Cada pessoa trans tem de viver para ela mesma, sem esperar que os outros estudem, se informem ou colaborem para criar a noção de respeito ao próximo. Uma entrevista como essa é uma concessão de uma narrativa. De uma travesti, de uma trans, de uma pessoa não binária. Em muitas ocasiões isso não foi escrito, não foi publicado. Essa história não foi escutada. Não só por você, mas pelas minhas próprias irmãs (travestis). Ela tem de ser contada a partir de nós.

Universa — Seria um transcentrismo?

Ana Matheus — Não, um traviarcado.

 

 

 

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‘Comigo, o João Gilberto não fazia charminho’, diz cantora Leny Andrade http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/29/comigo-o-joao-gilberto-nao-fazia-charminho-diz-cantora-leny-andradeue/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/29/comigo-o-joao-gilberto-nao-fazia-charminho-diz-cantora-leny-andradeue/#respond Sun, 29 Dec 2019 07:26:32 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=23580 Convidado para uma festa na casa do governador de São Paulo Adhemar de Barros ( 1901-1969) nos anos 1960, o pai da bossa-nova, João Gilberto (1931-2019), afastou o sofá da parede da sala, se sentou ali atrás, escondido dos convidados, e  começou a cantar.

“Eu não estava na festa, mas todo mundo conhece essa história, ficou famosa”, diz a cantora Leny Andrade, 76, que acompanhou a bossa-nova desde os primórdios. “Aliás, ainda bem que eu não estava. Se estivesse, ia dar na cara do João de mão aberta, para ele parar com aquilo. Comigo, ele não fazia esse charminho”, garante ela, referindo-se às lendárias excentricidades atribuídas ao “gênio da MPB”.

Veja também:

“Uma vez, na minha casa, com outros músicos, ele ia começando alguma coisa nesse sentido, eu disse que aquilo era desnecessário, que todo mundo ali era muito bom, e então ele se tocou e parou.”

No espetáculo Leny Andrade 77 anos, ela canta 12 músicas, incluindo “As Rosas não Falam” (Cartola); Palhaço (Nelson Cavaquinho) e Dindi (Tom Jobim) (Foto: Marcelo Castello Branco/Divulgação)

Casinha de boneca

No mês que vem, fará um ano que Leny Andrade se mudou voluntariamente para o Retiro dos Artistas, no bairro da Pechincha, zona oeste do Rio. “Isso aqui é ótimo, eu adoro”, afirma ela, contradizendo tudo o que costumeiramente se ouve falar de  retiros para idosos, em especial o “dos artistas”, que abriga uma classe de seres humanos considerada imune ao ocaso. “Aqui a gente come bem, tem roupa lavada, é atendido por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas.”

No caso de Leny, não se trata de um retiro da carreira artística. Ela vive no que chama de “casinha de boneca”,  com sala, dois quartos, varanda e quintal. “O retiro não é um asilo”, diz a produtora Eliana Peranzzetta, que integra a LAL, ou Liga dos Amigos da Leny, grupo de sete pessoas que fazem as vezes de família da cantora.  “O retiro é um condomínio onde atores, cantores e produtores que não têm mais família convivem numa boa, recebem visitas, entram e saem na hora que querem e, no caso de Leny, até ensaiam.”

Tachauzinhos do palco

Entre os amigos que a visitam está o pianista João Maia, 16, que se tornou fã instantâneo de Leny quando a assistiu em 2013 na TV, na casa da avó, em uma apresentação durante a entrega do 24º Prêmio da Música Brasileira. “Fiquei muito impressionado com a voz e a interpretação dela. Nunca tinha visto nada parecido. Em 2017, a conheci pessoalmente, em um show. Agora, vou a todos, sento nas primeiras filas e recebo tchauzinhos do palco.”

Maia responde prontamente a todas as perguntas que se fazem sobre Leny: “Foram 31 discos selecionados, de carreira mesmo, mais dois DVDs, sem contar as participações”, afirma ele, e manda a lista por WhatsApp. “Em 2007, o disco ‘Leny Andrade e Cesar Camargo Mariano’ ganhou um Grammy.”

Com o admirador mais recente, o pianista João Maia, 16, no teatro Rival, Rio (Foto: Arquivo Pessoal)

Estamos aí

No próximo 30 de janeiro, quatro dias depois de seu aniversário, Leny se apresenta na versão paulistana da casa de espetáculos novaiorquina Blue Note — na qual fez sua estréia em Nova York, em 1988 e, desde então, ganhou fãs célebres — e incondicionais — como o cantor Tony Benett, que sempre a assistiu nas primeiras filas.

No show Leny Andrade 77 Anos, ela é acompanhada do pianista e arranjador Gilson Peranzzetta e canta doze músicas, incluindo “Fim de Caso”(Dolores Duran); “O Rio” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli); e a mais associada a ela,  “Estamos Aí”( Maurício Einhorn/Durval Ferreira/Regina Werneck).

Selinho em Tony Benett, em show no Blue Note de NY (Foto: Reprodução)

O beco e a bossa

O começo da carreira foi ainda antes da adolescência. Filha única de uma professora de música e um médico, Leny estudou piano durante três anos, com a mãe, e então entrou para a o Conservatório Brasileiro de Música. Ela afirma que aprender a tocar um instrumento é “fundamental para quem canta”. “Você tem noção de harmonia, sabe para onde ela tá te levando, e como (os músicos) estão te acompanhando, ou mesmo se não estão.”

Aos 15, Leny já se apresentava em bailes e em programa de calouros. Nessa época, a convidaram para cantar no Bottle’s Bar, no lendário Beco das Garrafas, em Copacabana, e então ela passou a frequentar a roda dos bossa-novistas. Ia acompanhada do pai, que a vigiava com marcação cerrada.

Na ocasião, teve contato com Sério Mendes, Roberto Menescal, Tom Jobim e Ronaldo Bôscoli — “que passou o rodo em toda a MPB, menos em mim”.

Beco das Garrafas, 1965 (Foto: Reprodução)

Leny está gripada

Na conversa, Leny fala naquele tom sério que o carioca raiz usa quando vai contar algo engraçado, justamente para tornar a história ainda mais divertida. De vez em quando sai um “porra!”, um “puta que o pariu!”, que não têm nada de agressivo, servem apenas para imprimir no discurso uma espécie de valentia sem maiores consequências.

“Há uns três dias, fiz um show com o Gilson, tava gripada, mas não tossi, não tive pigarro, e quando terminou, ele disse: ‘Ô Leny, você tá mesmo doente? Diz que  tá com febre por causa dessa gripe, então cadê a gripe, porra?’ Eu respondi: “A gripe foi pra puta que o pariu.”

Ela explica: “Eu esqueci dela (gripe). Comecei a cantar o repertório que a gente tinha combinado, e viajei nele. Eu disse para o Gilson: ‘Sinceramente, é mais importante eu pensar na música do que nos problemas que eu poderia ter tido no palco por causa de uma gripe.’” A parceria com Peranzzetta é antiga, os dois se apresentam juntos desde os anos 1980: “Ele sabe tudo, é fodão.”

Pelo álbum da dupla em homenagem a Cartola, Peranzzetta recebeu o “Prêmio da Música de Melhor Arranjador”. Depois, veio um CD com repertório de Nélson Cavaquinho, e seguiram-se inúmeros shows por todo o Brasil. “Leny vai fazer 77 anos e sua voz continua maravilhosa, suas interpretações levam o público às lágrimas”, diz ele.

Em agosto, no Imperator, Rio, com Gilson Peranzzetta (Foto: Marcelo Castello Branco/Divulgação)

Tchu-bi-du-ba-dá-bá-dá

Uma das marcas da interpretação de Leny Andrade é o scat singing, quando o cantor acompanha os músicos com improvisos vocais. Os dela tem um tempo tão exato que o jornal “The New York Times” chegou a compará-la a Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan.

Curiosamente, Leny tem um jeito de raciocinar parecido com o de interpretar: durante a entrevista, por mais que se mostre disposta a dar respostas objetivas, ela prefere o volteio. Aparentemente, não é para evitar algum assunto, mas para dar um certo colorido à história.

Vozeirão na catedral

Sobre Tom Jobim, por exemplo, a quem considerava “lindo e talentoso”, ela diz que “não era homem para atacar”. “Ele era intocável, feito uma divindade. Eu não o via como um corpo, mas como um som, uma harmonia. Preferia me aprofundar no espiritual do que ir por outro caminho. Eu o queria ali, onde eu tinha ele. A transa era outra.”

Em dezembro de 1994, quando Tom morreu em Nova York, Leny morava na cidade havia dois anos — e ficaria mais seis. O embaixador do Brasil a chamou para prestar uma homenagem na missa de sétimo dia, celebrada na catedral de St Michael. “Eu disse que faria o que ele quisesse.” Mas fez muito mais. Sua interpretação a capela de “Por Causa de Você” (Tom/Dolores Duran) foi tão arrebatadora, tão emocionante, que os aplausos vieram na forma de um silêncio reverencial — e muitas lágrimas.

Em “Embraceable You”, gravado em 1991, quando ela estava em Nova York, Leny canta “The Man I Love”; “Night and Day”e “Just in Time” (Foto: Reprodução)

Paixão sublime

Leny também se apaixonou musicalmente por Taiguara, Ivan Lins, Johnny Alf e muitos outros compositores que ela cantou, mas não tocou. Resolvia o amor platônico, sublime, musicalmente. Chegou a gravar um disco inteiro apenas com músicas de Ivan Lins.

Não que ela ficasse só nisso. Quando a paixão era, digamos, carnal, aí ela se jogava sem reservas. Costuma dizer que no México, onde morou durante cinco anos e meio, entre 1966 e 1972, namorou homens de “todas as raças e nacionalidades”. Se diverte contando a história de uma trepidante noite de amor com o então ponta-direita Jairzinho, conhecido como “Furacão da Copa (de 1970)”, em que os dois chegaram a quebrar uma cama. “E era cama das boas”, diz ela, séria.

Marido mensageiro

Quando fala dos relacionamentos longos, que foram poucos, Leny não começa do começo, mas do único homem que se tornou seu marido. Carmelo era um madrilenho que apareceu em sua casa nos anos 1980, levado pelo secretário dela na ocasião, Teo:

“O Carmelo veio com o recado do dono de um teatro que queria que eu me apresentasse lá. E também que eu transasse com ele (o dono do teatro). Duas semanas depois, (o Carmelo) me pediu em casamento. Eu aceitei. Ficamos cinco anos e meio juntos, até que eu vi que não era madura o suficiente para me relacionar com alguém tão livre.”

Mulherengo?

“Não. Ele tomava liberdades as quais eu não me habituava. De uma hora para outra, acendia um baseado no meio da sala. Ou então, estendia uma carreira de pó. Um dia, abri a porta e disse: ‘Tchau’.”

Mais de direita

A reação de Leny em relação ao vício do marido parece estranha, já que ela frequentava um ambiente musical regado a whisky e cocaína. “Nunca bebi, nem cheirei ou fumei. Tinha horror”, afirma.

Era tida como “careta”? “Isso não me incomodava não.”

Apesar de ter lidado com compositores perseguidos durante a Ditadura Militar, e convivido com artistas majoritariamente de esquerda, Leny afirma que sempre foi “mais de direita”. “Eu achava mais simples.”

Digamos que, no caso dela, direita e esquerda são conceitos relativizados. Ela diz, por exemplo, que Chico Buarque de Hollanda “nunca foi petista”. Informei que na véspera Chico jogara uma pelada com Lula, em Guararema (São Paulo). Leny repete: “De esquerda, ele?”, sem deixar claro se não sabia, ou se não acredita (quando quer mudar de assunto, ela pergunta qualquer coisa à cuidadora, Valéria). 

Sem corriola

Em relação ao feminismo, Leny afirma que o que eventualmente a incomoda é a “corriola”: “Eu nunca precisei de movimento para me afirmar. Minha mãe me deu muita segurança. Sempre fiz o que queria, namorei quem eu queria, cantei as músicas que eu queria. Quando me mandavam música para escutar (e gravar), e eu não gostava, eu dizia: ‘Isso aí não dá não’.”

Sempre muito firme, sem medo de se mostrar politicamente incorreta, ela associa o feminismo a mulheres que tiveram problemas na cama com homens. Pergunto se ela nunca teve: “Pode ser, mas não traumatizei”, explica.

Um exemplo

Ela fala de um “noivo”, Álvaro, com quem ficou durante oito anos, desde a adolescência, até que um dia decidiu ver se de fato gostava dele: “Deu um clique na minha cabeça, eu resolvi que iria para a cama com o Álvaro. Fui (faz uma pausa). Aí, acabou”, lembra ela, com um esgar meio cômico de contrariedade.

Oito anos até ir para a cama? “A gente passava a mão, se beijava muito, se esfregava.”

Por que não transava?  “Eu ia levando na minha, sem descambar para a sexualidade, porque não sabia onde ia dar.  Mantive o fogareiro em chama branda, para não deixar incendiar.”

O Álvaro não quis antes? Não insistiu? “Era muito engraçado, porque a gente se respeitava…O Álvaro se sentia muito bem comigo, frequentava as minhas rodas de amigos, não criava caso.”

Vocês eram mais amigos do que amantes? “É.”

Será que ele era gay? “Não. Acho que não…”

Só admirando

Depois de Álvaro, com quem perdeu a virgindade aos 23 anos, Leny diz que ficou mais acessível (“fácil”) aos homens. Em compensação, passou a exigir de si um sentimento mínimo de admiração em relação ao amante. “Senão, não quero trepar.”

Apesar de dizer que sempre gostou de “macho, e ainda de cor”, Leny conta que tanto Álvaro quanto Carmelo eram “brancos de cabelos pretos”:  “O Carmelo era um cromo, corpinho de bailarino, bom de cama pra caramba.”

Beleza interior

Diferentemente de muitas mulheres que se sentem inseguras namorando “cromos”, Leny diz que isso nunca foi problema: “Com certeza, beleza eu não tenho. Sempre quis que gostassem de mim pelo que eu sou. O que eu tenho, com certeza, é….beleza interior.”

Talento?

“É, pode ser talento.”

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Morre fotógrafo Antônio Guerreiro, consagrado por retratar famosas nos 1970 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/28/morre-fotografo-antonio-guerreiro-consagrado-por-retratar-famosas-nos-1970/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/28/morre-fotografo-antonio-guerreiro-consagrado-por-retratar-famosas-nos-1970/#respond Sat, 28 Dec 2019 17:54:30 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=23635

Morreu hoje de manhã (28) no Rio o fotógrafo Antônio Guerreiro. Ele estava com 72 anos e tinha sido diagnosticado com um câncer na bexiga havia três meses. Deixou uma filha, a advogada Maria Antônia, 29 anos, do relacionamento com a apresentadora Angelita Feijó, e um acervo de cerca de 300 mil fotos.  Nascido em Madri, ele era filho de um industrial português que migrou para o Brasil e tinha empresas em Minas Gerais.

Guerreiro tornou-se famoso entre os anos 1970 e 1990 por fazer retratos de atrizes, cantoras e celebridades, assinar ensaios de moda, capas de revistas e de discos, e cartazes de filmes. Muito requisitado como fotógrafo e como homem de charme irresistível, ele foi um conquistador serial de estrelas e tornou-se, por tabela, um dos personagens mais representativos do glamour do Rio naquela época.

Constam do vasto portfólio de Guerreiro fotos icônicas de Sonia Braga, Bruna Lombardi, Regina Duarte, Susana Vieira, Sandra Brea, Zezé Mota, Tonia Carrero, Dina Sfat, Nadia Lippi, Denise Dumont, Silvia Bandeira, Luiza Brunet, Gal Costa, As Frenéticas, Ionita Salles Pinto, Tânia Caldas e muitas e muitas outras. Sua expertise era atrair para debaixo dos holofotes as mulheres mais desejadas do momento.

Autorretrato de 2013; e fotografando para a Playboy, em 1972 (Foto: Arquivo Pessoal)

Luz, câmera e ventilador

A estética que o consagrou foi a do retrato em preto e branco, com as mulheres semidespidas ou nuas, figurino estilo mostra-e-esconde, cabelos armados e esvoaçantes, olhares lascivos, lábios entreabertos, batom uva, gloss e muito ventilador.

Da segunda metade dos anos 1970 até 1990, em um estúdio que mantinha no Catete, zona sul do Rio, fotografou a maior parte das capas da então festejada revista “Playboy”; produziu também as imagens de discos de Gal Costa, Baby Consuelo, Elba Ramalho, Marina Lima e Alcione; e ainda cartazes de filmes como “Dama do Lotação” (1978), de Neville de Almeida, e “Eu te Amo” (1978), de Arnaldo Jabor.

Amor ao flash

Entre um flash e outro, Antônio Guerreiro levou pra cama boa parte das retratadas; algumas ele chegou a namorar e, com outras, até a morar. Viveu com a colunável Ionita Salles Pinto, e as atrizes Sônia Braga, Sandra Brea e Betty Faria. “Ele deixou a Ionita (ex de Jorginho Guinle) para viver um romance tórrido com a Sônia Braga”, conta o jornalista Renato Fernandes, 56, um dos amigos que frequentaram a casa do fotógrafo até o fim.

Mais tarde, em um ensaio coletivo intitulado “Superstars”, para a revista “Vogue”, foi a vez de Sandra Brea. “A Sandra disse para ele no estúdio do Catete: ‘Quando essa mulher (Sônia) sair da sua vida, eu entro'”, conta Fernandes, que está escrevendo a biografia de Brea. “E assim foi. A Sandra se mudou de mala e cuia para a casa dele.”

Entre tantos nus femininos, Guerreiro fotografou um raro masculino, frontal, do novelista Gilberto Braga.

Festança no apê

No auge do sucesso, o fotógrafo costumava  receber o grand monde carioca — como os colunistas diziam na época — para festanças bem aditivadas na cobertura em que morava em Botafogo, zona sul da cidade. Há alguns anos, mudou-se para um apartamento de 400 m2 no posto 2, em Copacabana, e recebia poucos amigos, entre eles o bon vivant Pedrinho Aguinaga, lembrado pelas mulheres que namorou (Monique Evans, Liza Minnelli, Marisa Berenson, Demi Moore, Bianca Jagger), e pelo comercial do cigarro Chanceller, “o fino que satisfaz”.

O velório de Antônio Guerreiro está marcado para as 9h de amanhã, 29, no Memorial do Carmo do cemitério do Caju, na zona norte do Rio, e a cremação do corpo, ao meio dia. “Os primeiros médicos trataram o tumor como se o problema fosse na próstata”, lamenta Teresa Freire, última mulher do fotógrafo, com quem ele viveu 19 anos. “Fui a mulher com quem ele mais ficou”, diz ela. “Depois de todo mundo, ele sossegou comigo. O mais curioso é que nós já havíamos tido um relacionamento 40 anos atrás.”

 

 

 

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Com medo do preconceito, idoso LGBT pode voltar pro armário, diz geriatra http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/18/com-medo-do-preconceito-idoso-lgbt-pode-voltar-pro-armario-diz-geriatra/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/18/com-medo-do-preconceito-idoso-lgbt-pode-voltar-pro-armario-diz-geriatra/#respond Wed, 18 Dec 2019 07:00:23 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=23396 Idosos da comunidade LGBT não podem receber dos profissionais de saúde um atendimento igual ao oferecido a heterossexuais da mesma idade. Palavra de especialista. “Defender a isenção, nesse caso, significa fechar os olhos para a diferença”, afirma o geriatra Milton Crenitte, doutorando em Ciências na Universidade de São Paulo.

Para Crenitte, “não existe estado mágico de neutralidade”. “Se o atendimento ao paciente LGBT for igual, não se resolvem questões próprias dele.” Em uma aula ministrada na última sexta (6), no Hospital Sirio-Libanês, em São Paulo, Crenitte lembrou que gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros da terceira idade sofrem de “dupla invisibilidade”. “Além do preconceito que os velhos já enfrentam por causa da idade, há ainda o relativo à orientação sexual e à identidade de gênero.”

O geriatra afirma que o indivíduo dessa população apresenta mais chances de não ter se casado, de não ter tido filhos e de viver só, sem ninguém para apelar em caso de emergência. “O impacto psicossocial sobre eles é muito maior.”

Veja também: 

 

A cantora Mylena Jardim (centro), depois do show que ofereceu para a ONG Eternamente Sou, de acolhimento à população LGBT na terceira idade; na plateia, beneficiários e voluntários de todas as idades (Foto: Matheus Braz/Divulgação)

Volta para o armário

Segundo Crenitte, é comum haver resistência por parte dos idosos, de uma maneira geral, à ideia de viver em uma ILPI (Instituição de Longa Permanência para o Idoso), sobretudo pelo receio de se sentirem “institucionalizados” e “assexualizados”. Entre os LGBT, especialmente transgêneros e transexuais, existem relatos de pessoas  que voltaram para o armário depois dos 60 anos, com medo de serem discriminados no atendimento médico. “Essa desconstrução da identidade, ainda mais na terceira idade, pode precipitar um quadro de depressão ainda mais severo do que o que muitas vezes acomete os idosos.”

Enquanto não publica o resultado de um estudo que iniciou em agosto deste ano sobre envelhecimento e acesso à saúde, Crenitte apresentou na aula dados de estudos feitos fora do Brasil.

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos pela Lambda Legal, organização fundada em 1973 em defesa dos direitos da população LGBT, revelou que 56% dos gays, lésbicas e bissexuais entrevistados experimentaram algum tipo de discriminação no atendimento médico. O número sobe para 70%, quando os entrevistados se autodeclaram transgêneros ou transexuais.

Amor ou amizade?

Na experiência de Crenitte, “tudo o que esse idoso necessita é de um lugar onde ele seja incluído, respeitado, querido”. O geriatra fala da importância de se informar aos profissionais da área de saúde sobre as especificidades no atendimento a esse paciente. Só para citar um exemplo básico, Crenitte diz que muitas vezes os médicos se esquecem de que mulheres trans ainda podem ter próstata, e homens trans, útero e ovários.

Diz o geriatra que, em relação à abordagem dos médicos a essa população, a regra é “perguntar mais do que presumir [a heterossexualidade]”. As perguntas não devem ser diretas, e sim amplas. Exemplo: “Como é sua família?” “Tem irmãos?” “Você é casado” “Filhos?”.  Se são duas senhoras na mesma consulta, o médico pode indagar afetuosamente: “Há quanto tempo vocês se conhecem?”, ou “Parece que vocês significam muito uma para outra”, a fim de descobrir se está diante de uma relação de amor maior do que amizade.

A ideia não é “arrancar o paciente do armário”, explica Crenitte, nem obrigá-lo a se assumir. Apenas tranquilizá-lo, caso haja percepção de receio de se abir. Um dos facilitadores para deixar a pessoa à vontade para falar, por exemplo, sobre soropositividade, estando ela dentro do armário, é adotar uma estratégia de comunicação acolhedora. “Broches com as cores do arco-íris, bandeirinhas na lapela, no crachá, cartazes discretos na sala de espera, enfim, algo que sinalize que o ambiente é amigável ajuda muito”, explica Crenitte.

Chegando junto

Em São Paulo, o Centro de Referência do Idoso (CRI), ambulatório do Sistema Único de Saúde criado há 15 anos em parceria com a Associação Congregação de Santa Catarina, implementou em agosto o projeto Amigo da Diversidade.

O objetivo é “tornar os colaboradores que atuam na unidade mais sensíveis às questões de gênero e sexualidade, por meio da garantia de um melhor acolhimento às suas particularidades”.

“A intenção é promover acesso à população LGBT”, informa a assessoria do centro de referência, que realiza 22 mil atendimentos por mês, em 18 especialidades médicas diferentes.

Show beneficente

Crenitte sugere ao blog que procure também o administrador Rogério Pedro, 29, que há dois anos se dedica ao projeto Eternamente Sou, uma ONG de acolhimento à população LGBT 50+. Na sexta passada, a ONG reuniu 140 pessoas em um evento beneficente de Natal, com show da cantora Mylena Jardim, vencedora da 5ª temporada do programa The Voice Brasil, em 2016.

Na plateia, a professora aposentada Dora Cudignola, 67 anos, conta que perdeu a parceira para um AVC e, desde então, não teve mais relacionamentos afetivos. Apesar de se considerar “sortuda” por ter uma filha (também lésbica) que a ampara, e por gozar de saúde e condições financeiras para viver com algum conforto, Dora afirma que, depois que descobriu o projeto de Rogério, “tudo ficou mais bonito”.

“Nós, idosos, precisamos de alguém que nos ouça. Muitas vezes o jovem nos vê, mas não tem interesse na história que nos trouxe até aqui. Quando existe um grupo que te dá força, não tem idade, não tem nada que nos coloque para baixo. Eu sou uma mulher feliz de ter encontrado esse grupo.”

Para o professor Ricardo Alves da Silva, 53, também beneficiário, “a ONG  foi importantíssima [na vida dele]”. “Conheci muita gente que se tornou amiga, e hoje eu me sinto mais forte para expor minha homossexualidade. É muito bom encontrar pessoas com interesses parecidos.”

Geral do show de Mylena Jardim para a Eternamente Sou, no Bexiga (Foto: Matheus Braz/Divulgação)

 Nada, nada, nada

Rogério Pedro conta que foi criado em um lar evangélico e ainda estava no armário, aos 14 anos, quando começou a ter curiosidade sobre a vida que os homossexuais levavam. “Eu me sentia culpado, achava que poderia ir para o inferno, e então quis saber como os gays viviam, como era a relação deles com a família, com a sociedade, até que cheguei à velhice.”

Ele diz ter obtido “relatos tristes, histórias de isolamento, de solidão, de pessoas que tiveram a vida interrompida por causa de violência, homofobia, discriminação“. “Aí eu pensei: ‘Será que existe suporte para essa população?'”

A resposta foi “não”. “Não tinha nada, nada, nada.” A partir de então, ele começou a redigir, ainda no armário, o projeto de acolhimento para idosos. Rogério não se sente seguro para falar da Eternamente Sou como um equipamento em pleno funcionamento porque ainda corre atrás de estrutura para o atendimento.

Café, música e dança

Por enquanto, ele promove o “Café e Memórias”, um evento de confraternização realizado uma vez por mês, e ainda uma oficina de canto e coral e outra de expressão corporal. Conseguiu suporte para orientação jurídica e atendimento psicológico aos beneficiários.

Em um primeiro momento, as reuniões ocorreram em um centro de cidadania da Prefeitura, na região da Consolação, em São Paulo, que acabou sendo descontinuado, e também no Museu da Diversidade, na estação República do Metrô.

Rogério Pedro, o ator Celso Rabetti, o youtuber Luís Baron, do canal “Tô Passado“, e a especialista em gerontologia Valéria Takahashi, todos voluntários (Foto: Matheus Braz/Divulgação)

Fundos e pesquisa

A Associação da Parada Gay disponibilizou sua sede para a ONG, mas, apesar das boas intenções, o lugar não é espaçoso o suficiente para abrigar os eventos. Em 2020, Rogério quer inaugurar um centro próprio, que promova atividades de domingo a domingo. “O show da Mylena, que é nossa amiga há algum tempo, já faz parte de um empenho para juntar fundos”, diz.

Por sua vez, Milton Crenitte diz que já angariou em sua pesquisa cerca de 6.500 respostas,  1.000 delas de LGBTs. O médico espera divulgar o trabalho em fevereiro, quando completar seis meses. Quanto mais gente responder ao questionário, mais próximo da realidade ficará o resultado.

 

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“Prefiro ser engraçada do que coitada”, diz modelo negra criada em orfanato http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/15/prefiro-ser-engracada-do-que-coitada-diz-modelo-negra-criada-em-orfanato/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/15/prefiro-ser-engracada-do-que-coitada-diz-modelo-negra-criada-em-orfanato/#respond Sun, 15 Dec 2019 07:00:24 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=23320 A história da modelo baiana Adriana Quintiliano, 30 anos, tem todos os elementos para despertar aquele indefectível coitadismo que a parte equivocada da militância adora cultivar –por puro preconceito. Negra, pobre e órfã, ela chegou a ser adotada, foi devolvida ao abrigo, saiu aos 18 anos, morou em muquifos (nas palavras dela), viveu um relacionamento abusivo e só há pouco tempo parou de contar os tostões que ganhava trabalhando como estátua viva no Pelourinho e no Campo Grande, centro de Salvador.

“Prefiro falar disso tudo de forma engraçada, para não parecer uma coitada”, diz ela. De tão desencanada, a princípio Adriana perguntou se a entrevista era para falar de mulheres carecas. “É porque eu raspei a cabeça?” Sim, o presente para ela é muito mais importante.

Editorial para um trabalho de faculdade: “A entrevista é para fala de mulheres carecas?” (Foto: Arquivo Pessoal)

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Caminho pedregoso

Ainda bebê, Adriana foi encaminhada a um abrigo, já que sua mãe, vítima de uma doença mental, revelou-se incapaz de criá-la. No abrigo, o sonho de ser adotada por uma família rica e feliz só foi realizado na pré-adolescência, quando ela convenceu a direção do lugar a levá-la a um programa de TV. Quem sabe alguma família que a visse não se interessaria em assumi-la como filha. “A ideia foi minha”, conta ela, alegremente.

Apareceram duas ou três famílias. O juizado determinou que ela fosse morar com uma em que houvesse “irmãs” da sua faixa etária. Fizeram uma festança no abrigo, para comemorar o momento alvissareiro. Menos de dois meses depois, a família mandou Adriana de volta. “Fui devolvida”, diz ela, mais realista do que lamurienta. “Houve um problema de ciúme com as meninas da família.”

De azul, aos oito anos, com os irmãos de abrigo (Foto: Arquivo Pessoal)

De branco, à esquerda, na escola (Foto: Arquivo Pessoal)

Na comemoração dos 15 anos, com a madrinha, Tati, depois de ser devolvida ao abrigo: “Eu queria muito uma festa de debutante, minha madrinha fez pra mim!” (Foto: Arquivo Pessoal)

Observação importante

Apesar de a palavra abrigo nem sempre estar associada a um lugar quentinho e acolhedor, Adriana diz que não pode se queixar do local onde viveu. Administrado por cristãos presbiterianos, amparava 25 crianças que frequentaram escolas particulares, como bolsistas, e que até hoje se chamam de irmãos. Ela foi parar ali porque sua mãe já havia passado no lugar.

“Quando o órfão faz 18 anos, não pode mais permanecer no abrigo. Num primeiro momento, eu fiquei com quatro irmãos que moravam em um quartinho minúsculo”, conta ela, meio que de passagem (ou sem tempo para fazer render o instante ruim).

De estátua viva, na Praça do Campo Grande, em Salvador  (Foto: Arquivo Pessoal)

Desaforo, não

Àquela altura, a pequena órfã havia se transformado em uma mulher deslumbrante, de 1,74 m, 49 quilos e muita disposição para a aventura.

Namorou homens e mulheres, viveu um relacionamento abusivo com um agressor que quebrou um banco em sua cabeça, trabalhou como estátua viva no Pelourinho e no Campo Grande, foi garçonete no mesmo restaurante em que descascava batatas e lavava louça, converteu-se em babá e trabalhou em butique.

Levou alguns calotes de patroas que queriam uma escrava, não um funcionário remunerado. “Eu não sou fácil, não levo desaforo pra casa”, informa. E se o relacionamento (afetivo) não está bom, mesma coisa: “Termino numa boa.”

Posando para um fotógrafo israelense, na Casa Castro Alves  (Foto: Lisandro Suriel)

Não teve jeito

Por força do hábito, eu quis transformá-la em uma pessoa minimamente amargurada –e assim ter mais uma “incrível história de superação” para postar. Acontece que a entrevistada não colaborou. A musicalidade de seu sotaque, o tom meio avoado com que contou as partes mais barra-pesadas de sua vida, e a risada curta e intensa entre um relato e outro afugentaram qualquer sentimento de misericórdia.

Ao final do telefonema, digo a Adriana que considero seu depoimento tão contundente quanto o de milhões de órfãos no Brasil, peço a ela que me entenda, me despeço e desligo.

Como assim??

Inconformada, ela passa a me mandar mensagens dizendo:  “a minha história é de superação, sim”, “tive uma vida difícil, passei fome, fui agredida pelo namorado…”

Ensaio na Estação da Luz, São Paulo (Foto: Fernando Gomes)

Autocomiseração zero

Eu acho divertido, não pelos fatos (trágicos) em si, mas pela maneira com que ela tenta me sensibilizar. Nitidamente, a própria Adriana não dá todo esse peso àquelas passagens ruins, e muito menos atribui a elas o poder de interferir nos seus planos de sucesso.

Com uma energia aparentemente inesgotável, ela conta que terminou a faculdade de design, fez um curso de corte e costura e agora, além de posar como modelo comercial, pretende trabalhar nos bastidores da moda. Claro: escrever uma biografia. Ah, verdade, depois de inúmeras experiências com ficantes de ambos os sexos, ela deu uma estabilizada em um relacionamento com um “homem maduro”. “Só gosto de mais velhos”, revela. Conta que está com o maduro há dois anos.

O que, no caso dela, soa uma eternidade.

Comercial da marca de sorvete Cubana (Foto: João Regis)

 

 

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Em ato, parente diz que responsável direto por chacina tem nome: João Doria http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/09/em-ato-parente-diz-que-responsavel-direto-por-chacina-tem-nome-joao-doria/ http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/2019/12/09/em-ato-parente-diz-que-responsavel-direto-por-chacina-tem-nome-joao-doria/#respond Mon, 09 Dec 2019 08:00:45 +0000 http://paulosampaio.blogosfera.uol.com.br/?p=23209 O som estridente da música evangélica, emitido por duas caixas instaladas à frente das quatro fileiras de cadeiras de plástico branco, reforça a imagem da desolação. Lideranças da favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, promoveram ontem um ato ecumênico em memória dos nove jovens mortos pela polícia no baile funk DZ7. Na madrugada de domingo, 1º de dezembro, durante uma operação da Força Tática (grupamento especial de patrulhamento ostensivo) da PM, frequentadores do baile foram encurralados pelos policiais, brutalmente agredidos e abandonados sem socorro adequado. Os nove mortos tinham idades entre 14 e 23 anos.

O ato reuniu cerca de 100 pessoas e sete religiosos — um monge beneditino, quatro frades franciscanos, um pastor evangélico e um médium kardecista.

“Não se apaga fogo com gasolina”, diz o frei franciscano Almerino, da Ordem dos Frades Menores (OFM), que em sua fala recorreu ao Livro do Êxodo, do Antigo Testamento, para recriminar duramente a ação da polícia com os jovens, e repudiar a injustiça dos “faraós” com os menos favorecidos.

“Nem toda ordem é justa. Se alguém der ordem para matar, não obedeça. Se der ordem para comprar armas, não compre. Eu fico imaginando o absurdo, se esses 5 mil jovens [estimativa do número de frequentadores do baile], se eles tivessem obedecido às ordens de um faraó de hoje, eles estariam todos com uma metralhadora na mão. Já imaginou o que aconteceria numa situação dessas?”

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Cristina, mãe de Denys Guilherme, que tinha 16 anos: “O que fizeram com os nossos corações foi uma atrocidade; eu escuto a voz do meu filho todos os dias”(Foto: André Porto/UOL)

Pegos pelo VAR

A versão que a PM divulgou foi a de que os policiais estavam em uma operação chamada pelo governo de “Pancadão” (uma referência a bailes funks clandestinos) quando, ao se aproximar de Paraisópolis, foram recebidos a tiros por ocupantes de uma moto. Na perseguição, os supostos bandidos teriam entrado no baile para se misturar aos frequentadores, sem, contudo, parar de atirar. Os policiais então chamaram reforço e invadiram o baile. Na confusão, teriam pisoteado e matado nove inocentes, porque afinal não poderiam perder de vista os bandidos.

Ocorre que no mesmo dia circularam nas redes sociais vídeos feitos na comunidade que mostram os policiais em pleno exercício da violência gratuita. Tudo aconteceu na Viela do Louro e na Três Corações, duas passagens paralelas que não têm mais de cinco metros de largura e saem da Rua Ernest Renan, onde se realizam os bailes. Desesperados com a ação abrupta dos policiais, que apareceram de um lado e do outro da rua, os jovens se refugiaram nas vielas — mas foram cercados de dois lados.  “Não tinha para onde correr”, diz um morador da Ernest Renan, que estava no baile e foi ao ato ecumênico. 

Mas e os bandidos de moto? “É mentira!”, revolta-se o rapaz. “Isso não existiu!”

A Viela dos Louros, onde os jovens foram encurralados e mortos (Foto: André Porto/UOL)

A impunidade manda

“O b.o. [boletim de ocorrência] quem faz são eles [a polícia]”, afirma José Marcelo da Silva, o presidente da Ação Comunitária Nova Heliópolis, liderança da favela onde um homem morreu na mesma noite, em outra ação da polícia. “Você vê claramente no vídeo que não houve conflito, ninguém atacou os policiais, muito ao contrário: eles chegaram batendo. Eles fazem isso porque sabem que vão sair impunes. A corporação manda para a parte administrativa, e em alguns meses eles estão na rua de novo.”

O blog tentou falar com a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública do Estado, mas não a encontrou por telefone nem obteve resposta à mensagem enviada pelo aplicativo WhatsApp.

Corações despedaçados

Ao falar no ato, o tio de uma das vítimas afirmou: “O responsável direto pela chacina aqui em Paraisópolis tem nome: João Doria”, referindo-se ao governador do Estado. “E, depois, o secretário de Segurança Pública e a polícia. Isso não pode ficar assim, a gente não pode deixar passar mais uma vez. Essa chacina não matou apenas nove pessoas, mas destruiu a vida de muitas outras. Pelo menos 100 parentes e amigos agora estão com o coração despedaçado com o destino desses meninos.”

Duas horas depois de lamentar as mortes nas redes sociais, no dia 1º, o governador João Doria apoiou a polícia na ação. No evento da filiação do ex-ministro Gustavo Bebiano ao PSDB do Rio, Doria disse que “hoje, São Paulo tem uma polícia preparada, equipada e bem informada” e ainda que “a segurança em São Paulo se faz com com seriedade, com planejamento, com estruturação, com inteligência para permitir a ação preventiva do crime, com respeito aos policiais”.

Só que os vídeos das agressões viralizaram, e ficou complicado para o governador reafirmar as boas intenções da segurança pública. Na quarta-feira, 4, depois de uma manifestação organizada pela comunidade até o Palácio dos Bandeirantes, parentes das vítimas e moradores exigiram uma reunião com Doria. Na ocasião, foi criado um comitê externo de acompanhamento, integrado por familiares, pelo Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) e pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Genocídio higienista

“O Doria sempre foi claro no que ele pretende. A Operação Pancadão é genocida, higienista, atende a determinados setores da sociedade que não gostam do barulho, da música, do comportamento desses jovens”, diz a deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP), presente ao ato. “Ao mesmo tempo, Paraisópolis é a região da cidade onde há mais jovens, proporcionalmente, e você não vê um Céu, um espaço de convivência, de referência, nada. É lógico que eles vão para as ruas.”

De acordo com a gestão do atual governo, a “Operação Pancadão” tem o objetivo de “garantir o direito de ir e vir do cidadão e impedir a perturbação do sossego”.

Sâmia não tem dúvida de que as vítimas do domingo, 1º de dezembro, foram “emparedadas” em uma ação consciente da polícia. “Eles consideram esses jovens um incômodo que deve ser eliminado.”

Gilson Rodrigues, presidente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, afirmou que pretende entrar com uma ação civil pública para conseguir investimentos em cultura e educação nas comunidades dos nove jovens mortos — que tinham vindo de outras regiões da cidade. “Se não houvesse o mesmo problema lá, eles não viriam para cá”, diz. 

O universitário Danylo Quirino Salvador, irmão de Denys Henrique, uma das vítimas, e a mãe: a imagem da dor (Foto: André Porto/UOL)

Dor de irmão

Em um dos momentos mais pungentes do ato, o universitário Danylo Quirino Salvador, 19 anos, que passou a maior parte do tempo com uma expressão apática, chora descontroladamente ao falar do irmão Denys Henrique, uma das vítimas.  Diz que vai perseguir a Justiça até o fim.”Ele tinha 16 anos, cursava o ensino médio e trabalhava com limpeza de estofados.”

Estudante do 4º período de geografia na USP (Universidade de São Paulo), Danylo é coordenador de um movimento de educação popular chamado Emancipa, que oferece cursinho de pré-vestibular a jovens da periferia. O movimento é bancado pelos próprios voluntários. Ele conta que tem ainda dois irmãos, uma de 8 anos, e que todos foram criados só pela mãe.

Ao afirmar que não vai ter paz enquanto o responsável pela morte de seu irmão não for punido, ele corrige: “Sinto que eu nunca vou ter paz.”

 

 

 

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