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Paulo Sampaio

Dramaturga Leilah Assumpção, 76: "Demorei pra 'dar', mas depois, nossa!"

Paulo Sampaio

08/01/2020 04h00

Muito festejada desde o fim dos anos 1960 por peças que abordam "questões femininas", a dramaturga Leilah Assumpção, 76 anos, pratica até hoje uma espécie de feminismo vintage. Leve. Nada de competição com arquétipos masculinos, raiva ou ressentimento. "O feminismo de hoje exclui os homens. O nosso, ao contrário, incluía. A gente não tinha necessidade de provar que era igual a eles. Nós queríamos a igualdade de oportunidades justamente para poder usufruir melhor as diferenças."

Na época, o simples uso dos verbos "dar" e "trepar" já era considerado um ato libertário. As duas expressões, quando ditas por desbravadoras remanescentes do "universo da mulher", como Leilah, ainda soam como peraltice de criança que acabou de aprender um palavrão.

Ao citar, por exemplo, o tempo em que morou na rua General Jardim, na região central de São Paulo, na juventude, ela diz: "Em dez anos, tive muitos casos maravilhosos! Trepei tanto naquele apartamento!". A General Jardim fica próxima ao prédio onde funcionava a faculdade de filosofia ciências e letras da USP, na Consolação, centro de SP, palco de resistência do movimento estudantil contra o regime militar. O lugar tinha um apelo especialmente afrodisíaco para uma gama de intelectuais de esquerda, hippies estilizados e contraculturetes. Leilah, que era alta, linda e curiosa, cursava pedagogia na USP. Uma personagem adrede preparada para aquele instante…

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Na década de 1970, como ela diz, "feliz da vida"(Arquivo Pessoal)

Manequim virgem

Enquanto se engajava, ela trabalhou durante cinco anos como manequim (o equivalente à modelo de hoje), período em que permaneceu sexualmente invicta. No ambiente da passarela, diz, "isso era chiquérrimo". "O [estilista] Dener se referia a mim como a 'manequim virgem'." Segundo conta, naquele momento ela "não tinha interesse nenhum em sair com os caras". "Quando acabavam os desfiles, ia todo mundo pra boate, eu voltava pra casa, para escrever. Ninguém acreditava, achavam que eu escondia um caso secreto."

Seu sonho era fazer parte do efervescente grupo do Teatro Oficina, liderado pelo ator, diretor e encenador José Celso Martinez Corrêa. Em pouco tempo, ela conseguiu se aproximar deles e, logo, estava tendo aulas com o diretor ucraniano Eugênio Kusnet, conhecido por apresentar a seus alunos o método Stanislavski, super em voga época; conheceu também o ator e diretor Renato Borghi, e todos que estavam embaixo daquele guarda-chuva. Passou a frequentar as coxias, os ensaios e os espetáculos: "Eu amava aquilo tudo", diz. Na recém-lançada autobiografia "Memórias Sinceras" (Sa Editora), que escreveu em cinco anos, a partir do nascimento de seu primeiro neto, Otto, em 2014, Leilah conta que namorou Zé Celso e, por um motivo que é "segredo absoluto", ele lhe aplicou um tapa no rosto.

Ela diz que foi "bom": "O Zé Celso era tímido, eu consegui arrancar uma ação dele. Não significa que eu gosto de apanhar. Mas aquele tapa foi bem dado." (Imagina-se o que uma feminista da safra millennial diria de uma declaração dessa. Para uma representante do movimento, hoje, não existe a menor possibilidade de considerar um tapa no rosto, aplicado por um homem, "bem dado").

Com Dener, quando ainda era uma "manequim virgem": "Chiquérrimo!" (Arquivo Pessoal)

Fala baixo…

Enquanto desfilava, Leilah reunia as ideias embrionárias de peças que viriam a ser sucessos premiadíssimos. Usava uma máquina de escrever Remington comprada com o primeiro salário como desenhista no ateliê de Madame Boriska –famosa modista da época.

Em 1969, aos 26 anos, ela conseguiu que seu namorado na ocasião, o diretor Clóvis Bueno, lesse para Marília Pêra a peça "Fala Baixo Senão Eu Grito". Conta a história de Mariazinha, uma funcionária pública solteirona e infantilizada que mora em um pensionato para mulheres e é surpreendida pela entrada de um ladrão em seu quarto. Na conversa entre os dois, Mariazinha sofre uma espécie de transmutação onírica e passa a experimentar desejos antes reprimidos e uma sensação de liberdade jamais vivida. Cheio de metáforas, o texto aborda de forma delicada e, ao mesmo tempo, dinâmica, o machismo, a emancipação feminina, os dilemas de um contingente substancial de mulheres da época. 

Marília Pêra gostou, arrumou patrocínio com o governo e montou o espetáculo. Considerada por Leilah sua estreia oficial no teatro, a montagem rendeu o prestigiado prêmio Molière para ela, Marília e Clóvis.  "Fui respeitada logo de cara", lembra. "Eu também me respeitei." Talvez por isso ela lembre com bom humor a reação da produtora cultural e deputada Ruth Escobar (1935-2017), quando soube da montagem do espetáculo. "Ela disse: 'A Marília vai fazer a peça da manequim'. Depois, nos tornamos grandes amigas."

Desarrumação estudada

Apesar do prestígio, Leilah conta que continuou enfrentando preconceito de pessoas que tentavam diminuí-la em função de sua carreira pregressa, na moda. "Ninguém acreditava que uma manequim poderia escrever tão bem. Eu até passei a andar meio desarrumada pra ver se me enxergavam de outro jeito."

Lembrada especialmente por "Fala Baixo..", que ganhou inúmeras montagens nos últimos 40 anos, Leilah depois escreveu mais de 20 peças. As mais importantes são "Roda Cor de Roda" (1975), também montada no Brasil e no exterior, e "Intimidade Indecente" (2001), que fala dos desencontros de um casal que está se separando. Em sua primeira versão, foi levada ao palco por Irene Ravache e Marcos Caruso. Em cartaz atualmente em Lisboa, com Caruso e Vera Holtz, o espetáculo atrai mil pessoas por sessão: "É um sucesso absoluto", orgulha-se Leilah.

Brigadeiro x baba de moça

O texto de "Roda" fala de uma mulher que descobre que foi traída, manda o marido embora e monta um bordel em casa.  Escrito em plena ditadura militar, o espetáculo sofreu cortes e obrigou Leilah a se deslocar até Brasília mais de uma vez. Ao contrário do que se pode imaginar, ela não ficava apreensiva quando precisava conversar com os censores. Achava até "divertido".

"Eles eram uns velhinhos meio obtusos, impossível não achar graça", diz. "Teve um que encasquetou com o nome do doce 'brigadeiro', porque achou que fazia alusão desrespeitosa ao posto [das Forças Armadas]. Eu disse que poderia trocar por 'baba de moça', e assim ele liberou o texto."

Sexo e ácido

O feminismo exercido por uma leva de intelectuais da época admitia, em sua "luta",  a aliança com os homens. "A gente tinha um inimigo comum, a ditadura", lembra Leilah. Isso ensejava noitadas intermináveis no restaurante Gigetto, no centro de São Paulo, ponto de encontro de jornalistas, escritores, do "povo do teatro", e cineastas, músicos, artistas plásticos…  Falava-se de grandes textos, da revolução bolchevique, do movimento antropofágico, dos hippies, de ácido lisérgico, e, claro, da liberação sexual.

A essa altura, já não era mais chiquérrimo ser virgem. Leilah: "Imagina! Quanto mais você desse, mais era valorizada no teatro. Tinha de ser boa de cama!"

Estágio em Londres

Os dilemas femininos abordados por Leilah em suas peças –e aplaudidos por multidões de mulheres que as assistiam– estavam mais associados à insatisfação existencial de uma classe média urbana, do que a questões de cor, raça, gênero e  orientação sexual –como hoje.

Ainda não havia algo da dimensão (globalizada) do movimento #metoo, nem um evento com a repercussão que teve nas mídias sociais o atentado à vereadora carioca Marielle Franco (PSOL-RJ), que era negra e lésbica, muito menos se falava na "questão de identidade de gênero".

Na turma de Leilah, o aspirante a rebelde antiestabilishment precisava viver in loco o Swinging London, usar Mary Quant, ouvir Pink Floyd e zanzar pela King's Road. Na segunda metade dos anos 1960 e começo dos 70, Londres era considerada a cidade mais vibrante do mundo, o lugar onde tudo acontecia. "Ácido eu tinha medo", diz Leilah, e explica a lacuna.  "Achava que não voltaria da viagem."

Leilah com o escritor e diretor Antônio Bivar, em Londres, nos 1970 (Arquivo Pessoal)

Marido banqueiro

Um dia, no início da década de 1980, Leilah se casou com um banqueiro. "É por isso que eu vivo aqui", diz ela, referindo-se a um casarão no nobre Jardim Europa, na zona oeste de São Paulo. Walter Appel é fã de bossa nova, boêmio e apaixonado pelo ambiente cultural: "Ele investia nas minhas coisas", diz ela, sem rodeios.

Os dois ficaram juntos durante 20 anos, estão separados há 20, mas ainda são vizinhos. Tiveram uma filha, Camila, hoje com 37 anos, que se tornou "a principal redatora do programa do Bial". A mãe se orgulha do talento de Camila, embora afirme que o trabalho das duas, como escritoras, não tem nada a ver: "Ela [Camila] é séria. Linda e séria. Quando criança, dizia que queria ser presidente da República."

Com o ex-marido, Walter Appel, pai de sua filha, Camila: 20 anos casados; há 20 separados (Arquivo Pessoal)

Lobo solitário

Pelas tantas, Leilah e uma turma de feministas elitizadas se juntaram em um grupo informal batizado FNM (alusão à potência de um caminhão fabricado na época, conhecido como FêNêMê, que elas transformaram em Frente Nacional de Mulheres). Faziam parte da FNM Ruth Escobar, Carmem Barrozo, Eva Bly, Marta Suplicy e Ruth Cardoso: "A gente se reunia sempre. A Marta foi na minha noite de autógrafos (da autobiografia)", diz Leilah, que hoje passa a maior parte do tempo em casa e se considera um "lobo solitário".

Em 2013, quando contraiu febre herpética e precisou se submeter a intervenções cirúrgicas e tomar medicamentos que deixaram seu rosto, nas palavras dela,  "transfigurado", Leilah se afastou da mídia: "Eu tinha sido uma manequim requisitada, era bonita quando jovem, foi complicado", diz. Mas então, como sempre, usou o humor para transformar a experiência difícil em uma comédia. "Dias de Felicidade" estreou em 2015. "É uma história de amor. Eu sou muito resiliente", diz.

Na noite de autógrafos de Memórias Sinceras (Foto"Zanone Fraissat/Folha Imagem)

Tudo famoso

Na autobiografia, Leilah cita um impressionante elenco de celebridades. Além dos nomes já mencionados acima, ela conta histórias suas com Odete Lara, Regina Duarte, Sonia Braga, Lilia Cabral, Gianfrancesco Guarnieri, Antunes Filho, Antônio Cândido, Mario Lago, Samuel Wainer, José Dirceu, Vânia Toledo, Carlos e Kate Lyra, Dener, Clodovil e muitos, muitos outros.

A forma como fala das pessoas, sempre precedidas por adjetivos ("o grande dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho"; "Elis Regina, a cantora maior"; "o grande ator Paulo Autran"; "a famosa atriz e produtora feminista Ruth Escobar"), faz parecer que, mesmo consagrada, ela os admirava como se não fizesse parte daquele meio.  "Engraçado, nunca tinha visto por esse ângulo", diz.

Entre os famosos: Ruth Cardoso, Carlos Alberto Riccelli, John Herbert, Leilah, Fafá de Belém, Nélida Piñon, Mario Soares (presidente português à época), Fernando Henrique Cardoso, Bruna Lombardi, Bibi Ferreira, Regina Duarte, Lygia Fagundes Telles, Ruth Escobar e Irene Ravache (Arquivo Pessoal)

Falou e disse

Como "censura" era uma palavra (ainda mais) repudiada, Leilah fez das frases de efeito sua marca registrada. Em uma entrevista já nos anos 2000, ela reconheceu: "Apesar de algo romântica e conservadora, não resta dúvida de que minha dramaturgia é de impacto, não consigo ficar no ramerrame. Não brinco, quando tenho de falar, falo, sem rodeios".

Doa a quem doer, a alegada sinceridade de Leilah prende o leitor de suas memórias. Ela é o tipo de dramaturga que escreve como fala. Embora o livro não venha com a função "áudio", é possível ouvi-la quando se lêem os saborosos relatos. Ela costuma dizer que escreve assim, especialmente para teatro, porque aprendeu assistindo.

Digo que, no livro, quando ela usa um palavrão, quase pede desculpas. Ela afirma que não se tornou libertária de uma hora para outra, que "foi um processo", e então cita de novo, meio que gratuitamente, o tal verbo chave: "Demorei para dar. Mas depois, nossa! Namorei muito!" Demorou quanto? "Fiquei virgem até os 22."

E aí, acabou?

Nascida em Botucatu, a cerca de 250 km de São Paulo, Leilah morou nas vizinhas São João da Boa Vista e Espírito Santo do Pinhal. Entre entediada e cansada, refestelada no sofá da sala de estar do casarão, ela diz que não lembra a quantas horas de São Paulo fica Botucatu: "Nem sei mais", diz, com um acento de preguiça.

E, então, pouco depois de uma inspirada profunda, ela se enrola em um pano estampado, tipo indiano, e encerra o assunto no melhor estilo "cansei de brincar disso", como faz várias vezes no livro. E pergunta:  "Vai demorar muito ainda?"

Erramos: diferentemente do publicado, a pessoa anteriormente identificada em uma das fotos como mulher do ex-presidente português Mario Soares é a escritora brasileira Nélida Piñon

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.