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Paulo Sampaio

Mãe de 2 filhas, ela deixou marido, casou com mulher e agora é homem trans

Paulo Sampaio

12/01/2020 04h00

Aos 12 anos, quando teve uma paixonite de criança por uma vizinha de rua, o gerente de loja trans William Oliveira, hoje com 36 anos, nunca tinha ouvido falar na palavra "lésbica". Única filha mulher em uma família muito religiosa, de quatro irmãos, a menina intuía que aquele comportamento era condenável, mas não sabia por quê.

Pai motorista, mãe dona de casa, Will conta que sentia atração por meninas, mas de uma maneira muito inocente. "A gente não recebia nenhuma informação a respeito de sexo na escola, e em casa não havia a menor possibilidade de conversar sobre o assunto. Nem se falava nisso", lembra ele, que nasceu mulher, casou, teve duas filhas e fez a transição para o sexo masculino há cerca três anos. Hoje, mantém os cabelos muito curtos, cultiva barba, usa roupas folgadas, boné e alargadores de orelha. Aparenta muito menos idade, talvez porque faça, nas palavras dele, o estilo "moleque".

(Para facilitar o relato, o blog pede licença para tratar Will, quando vivia como mulher, no feminino).

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Aos 11 anos, na Copa do Mundo de 1994; e no ano passado (Fotos: Arquivo Pessoal)

É isso, e pronto

O amor de infância acabou sem que ninguém jamais soubesse. Com 13 para 14 anos, a mãe de Will tentou forçá-la a namorar um menino da igreja. Um mês de desespero. "Eu chorava diariamente, sem saber o que fazer." Era só o início..

Até chegar ao entendimento do que é identidade de gênero — um termo ainda mais remoto do que "lésbica" — o caminho foi longo. Incluiu um casamento de 15 anos, a maternidade e o firme propósito de constituir uma família, atribuição que ela acreditava ser de toda mulher. "Minha mãe falava 'é isso', e pronto, 'era aquilo'."

Casal invertido

O marido não era o menino da igreja, mas um primo por afinidade que chegou do nordeste para tentar a vida em São Paulo. Sem saber, os dois formavam algo próximo do que hoje chamam de "casal invertido": ela era uma menina com jeito de garoto, e ele, um rapaz afeminado. Pelo menos, era o que se comentava.

Mas a identidade de gênero e as preferências sexuais dos dois não tinham a menor relevância para a mãe da menina, que empurrou impiedosamente a filha para os braços do recém-chegado. Iniciou-se um namoro resignado, letárgico.

Nem um talher

Um dia, o irmão de Will, que morava com ela na casa de uma tia, contou para os pais que o casal de namorados andava dormindo na mesma cama. A mãe aproveitou o ensejo para forjar um escândalo, dizer que homem que dormisse com a filha dela tinha que assumir um compromisso, e os obrigou a se casarem. Will estava com 15 anos, e o namorado, 18. Indignados, eles se casaram, mas se afastaram da família dela: "Eu havia perdido a virgindade, mas não estava grávida. A gente não tinha um talher, nada."

E como é fazer sexo com alguém por quem não se sente atração?

"A gente raramente fazia, e, quando acontecia, era fisiológico. Eu via o casamento como a oportunidade de construir alguma coisa. E assumi aquela situação completamente, como se não houvesse nada em volta."

Durante todo esse tempo, nunca pensava em mulheres?

"Sentia atração, mas era algo muito distante, nem passava pela minha cabeça consumar qualquer coisa."

Sem alternativa

Aos 15 anos, Will engravidou da filha mais velha (que preferiu não participar da matéria).  "Fiquei triste, não sei dizer exatamente como. Eu tinha planos de terminar os estudos, de trabalhar, de ter as minhas coisas." Ele conta que não tomava anticoncepcional, "para não engordar".

Nessa ocasião, a mãe da grávida se reaproximou do casal, por conta da chegada do bebê, e levou a filha pela primeira vez a um ginecologista. "Eu não fazia ideia, por exemplo, de que poderia ter escolhido interromper a gravidez. Faltou alguém que me orientasse, uma tia, um parente, que dissesse: 'A vida não é assim, você pode tomar suas próprias decisões…'.  Eu era menor, continuava dependente, minha mãe ia me buscar no hospital quando tive as meninas…"

Aos 15 anos, grávida da primeira filha (Foto: Arquivo Pessoal)

Bofe x Mulherão

Um ano depois, ela engravidou da segunda filha, Estéphane. "Aí, eu chorei." Embora já estivesse informada sobre a alternativa do aborto e sua viabilidade, ela "tinha medo de morrer no procedimento".

Ao mesmo tempo em que reconhece que nunca teve instinto maternal, Will conta que a experiência de ser mãe  foi "única". "É algo que os homens nunca vão entender. Uma ligação muito forte, inexplicável."

Ele fala com adoração das filhas. Mostra fotos, conta que estão sempre juntos e que elas o enchem de orgulho: uma estuda publicidade, a outra migrou do curso de psicologia para o de direito. As duas são lésbicas. "Ambas estão namorando", diz.

As duas filhas (Foto: Arquivo Pessoal)

Descoberta aos 9

As meninas se assumiram antes de Will, na pré-adolescência. "Eu me descobri [lésbica] com nove anos, em 2009″, lembra Estéphane, 19.  "Falei só pra minha irmã. Disse a ela que me sentia diferente das outras meninas, e que gostava muito de uma, em especial, da igreja. Porém, aquilo de 'homossexuais vão para o inferno' me assombrava, e então eu me forcei a namorar meninos. Mas quando os beijava, sentia nojo."

Estéphane não contou logo para os pais, porque receava que eles reagissem mal. "Quando minha mãe (Will) se assumiu, em 2011, tive mais coragem. Mas só falei mesmo pra todo mundo alguns meses antes de fazer 15 anos."

Estéphane (de óculos) e a mulher dela, Elisa (Foto: Arquivo Pessoal)

Pão quentinho

O pivô do fim do casamento dos pais de Estéphane foi a primeira paixão de sua mãe na fase adulta, bem antes da transição. A mulher era frequentadora assídua da padaria onde o pai de Estéphane trabalha até hoje como gerente e confeiteiro. Will: "Eu ficava no balcão, ajudando, e essa moça me atraía muito. Eu não entendia direito o que estava acontecendo, só sabia que era bom. A moça era casada e tinha dois filhos, e eu, muito inocente, mantinha aquilo para mim, platonicamente. Sequer imaginava a possibilidade de ela ser casada com outra mulher..."

Pois é. Isso foi se revelando aos poucos. As visitas à padaria se tornaram cada vez mais frequentes e, aparentemente, a experiente visitante estava gostando de atiçar os instintos mais primitivos da mãe de família resignada.

Um dia, tomada por um desejo incontido, a balconista chamou a mulher que estava tirando seu sono para ser sua amiga no Facebook. Ela topou, e aproveitou para mandar uma indireta qualquer. Dois ou três dias depois, passou na padaria de carro, chamou a outra para dar uma volta, e "rolou". Àquela altura, Will estava "completamente apaixonada". "Não pensava em mais nada."

Duplamente proibido

Ambas deixaram seus lares para assumir o amor, que, para Will enquanto mãe de família, era duplamente proibido. Como ele conta hoje, "foi algo que me dominou completamente". "Não tinha como controlar. Percebi depois que não tinha jeito, estava na hora de viver aquilo."

Na sequência, Estéphane e Tiffany deixaram os respectivos armários, e, por último, o pai delas se assumiu gay.

Baladeiro por um tempo

Cerca de um ano e meio depois, quando terminou o relacionamento com a moça da padaria, Will ainda não havia feito a transição. Ele conta que, depois da separação, viveu tudo o que havia reprimido na adolescência e juventude. "Saí muito, conheci muita gente, beijei muito", lembra ele, muito simpático, sem nenhuma afetação de cafajestagem.

Em uma praça que era ponto de encontro de pessoas LGBT no Tatuapé, na zona leste de São Paulo, conheceu a designer de sobrancelhas Samanda Morais, 28 anos. Na época, seu cabelo era raspado de um lado e tingido de azul do outro.

Samanda: "Ele era uma lésbica de atitudes diferentes. Usava roupas femininas, mas eu não enxergava uma mulher nele. Nem um homem. Só sei que eu gostava daquilo."

Com Samanda, em um domingo na avenida Paulista (Foto: Arquivo Pessoal)

Nada muito simples

Naquela ocasião, Samanda tinha 23 anos e ainda não havia contado a ninguém na família sobre sua orientação sexual. Diz que isso foi "muito difícil" ("minha mãe me expulsou de casa"), mas nada comparado ao momento em que, depois de dois anos de casamento, a mulher (Will) comunicou a ela a intenção de fazer a transição de gênero.

"Foi muita coisa para a minha cabeça. Eu não aceitei e pedi a separação. Dos seis meses em que passamos longe um do outro, cinco eu fiquei com um homem cis (identificado com o gênero atribuído a ele no nascimento)."

O relacionamento dos dois já dura cinco anos, sendo os três últimos com um homem trans: "Era outra pessoa. Aquela do passado tinha morrido. Eu vi um homem."

Samanda: "Aquela pessoa do passado tinha morrido, eu vi um homem." (Foto: Arquivo Pessoal)

A mesma outra pessoa

E como foi acompanhar a transição? "Na verdade, a 'outra pessoa' era 'a mesma', no jeito de me tratar."

Nada mudou? "Quando perguntavam sobre ele, eu tinha vergonha de falar, porque eu não era assumida e ficava com homem cis também. Para todos os efeitos, eu estava experimentando mulher. Mas o engraçado é que eu não preferia um homem ou uma mulher. Eu preferia aquela 'mulher', que era o Will."

Pai Will

Por sua vez, Estéphane conta que levou um tempo para se habituar a chamar a mãe de pai. "Até hoje confundo. Ainda não tenho o hábito, por conta do meu outro pai. Mas chamo de 'Will' tranquilamente."

Pergunto se ela acha que o fato de ser lésbica pode ter facilitado a aceitar a transição da mãe. "Se fosse heterossexual, daria na mesma. Desde criança, tenho a mente muito aberta, e aprendi com meus pais a respeitar as pessoas como são."

Pessoalmente, Estéphane acredita que não faria a transição de gênero. Acha também pouco provável se atrair por um homem trans. "Sempre gostei de mulheres bem femininas."

Cara a cara com Estéphane (Foto: Arquivo Pessoal)

Pela primeira vez, as duas famílias passaram o Natal juntos. Will e a mulher; as duas filhas com as respectivas; e o pai delas com o namorado. "Foi um presente para todos nós", comemora Will.

 

 

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.