Estudo mostra que a população negra de SP é mais vulnerável à Aids
Paulo Sampaio
27/07/2018 05h00
De uma maneira geral, as estratégias de prevenção contra o vírus do HIV têm sido ineficientes. O cenário se torna ainda mais preocupante entre os negros, já que o número de infectados que desenvolveram a Aids se revelou muito maior do que entre brancos. É o que mostra um estudo de tendência que o sanitarista Artur Kalichman, coordenador e diretor técnico substituto do Centro de Treinamento e Referência DST-Aids, ligado à secretaria da Saúde do estado de São Paulo, apresentou ontem na 22nd International Aids Conference, em Amsterdam, tida como o mais importante evento sobre a doença no mundo.
Como Kalichman explica, quem tem o vírus não necessariamente desenvolveu doença. "Uma coisa é contrair o HIV; outra é desenvolver Aids, outra morrer de Aids", diz o sanitarista. "Depois de 1996, quando a mortalidade por Aids começou a cair por causa do tratamento com o coquetel (combinação de medicamentos anti-retovirais), o desenvolvimento da doença e a morte por ela passaram a depender do acesso ou não ao tratamento."
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A epidemia só cresce
Realizado entre 2007 e 2016, o estudo revelou que o número de casos de infecção por HIV não para de crescer. O resultado, tanto entre brancos como entre negros, é alarmante. O crescimento mais lento entre negros não indica necessariamente que eles tenham contraído menos o vírus: "O mais importante é observar a tendência ao aumento de casos, que se baseia em estatística", diz o sanitarista. Ele reconhece que "a vulnerabilidade à infecção por HIV mostra que as campanhas de prevenção têm falhado".
Os números de infecção por HIV apresentam crescimento tanto entre brancos como entre negros
Em relação aos casos de pessoas HIV positivas que desenvolveram Aids, observa-se que entre os brancos há um crescimento seguido de queda, enquanto entre os negros os números só aumentam. Para Kalichman, isso indica que "os brancos fazem mais o teste, sabem mais rapidamente o diagnóstico, começam a se tratar logo e não desenvolvem a doença".
Racismo e iniquidades
O quadro revelado pela pesquisa é, segundo o médico, reflexo direto do racismo. "O preconceito de cor leva a uma série de iniquidades que dificultam, para essa população, o acesso à prevenção do HIV, ao teste e ao tratamento da Aids. Para onde você olhar no Brasil, saúde, educação, salários, vai ver que os negros estão em desvantagem. Isso evidentemente impacta nos acessos. Enquanto nossa sociedade não enfrentar o racismo, uma questão que é estrutural no Brasil, esses resultados não vão melhorar."
Quando se fala no desenvolvimento da doença (Aids), o gráfico apresenta nítida diferença: segundo Kalichman, isso mostra que os brancos tiveram mais acesso ao teste, ao diagnóstico, ao tratamento
Medicamentos para brancos
No início da epidemia, nos anos 1980, quando não havia medicamento eficiente para combater a doença, tudo o que agora se vê no primeiro gráfico, da infecção por HIV, evoluiria na mesma proporção nos casos de Aids – 5, 6, 8 anos depois (prazo para o desenvolvimento da doença, a partir do diagnóstico).
As novas drogas para a prevenção do HIV, a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao vírus) e a PEP (Profilaxia Pós-exposição), que apresentam um bom resultado, devem ter impacto positivo na reversão desse cenário. Mas Kalichman reconhece: "É bem provável que tenham mais impacto entre brancos do que entre negros."
Apesar da oscilação na linha (azul), o médico diz que a mortalidade por Aids entre brancos tende a se estabilizar, enquanto entre negros só aumenta
Resultado previsível
Para militantes dos coletivos de negros soropositivos, o preconceito racial, de classe e de orientação sexual (e gênero) estão na base de todo o problema. "Essas informações (que aparecem no estudo) sempre foram visíveis. É muito óbvio. Está ligado à questão sócio-econômica, à qualidade de vida dessas pessoas. A maioria vive em lugares insalubres, cortiços, pensões lotadas, barracos com esgoto a céu aberto", afirma Helcio Beuclair, idealizador e coordenador político do coletivo Arouchianos, que reúne a comunidade que frequenta o Largo do Arouche, no centro de São Paulo.
Soropositivo desde 2015, auto-referido "pardo" ("meu pai era negro"), Beuclair conta que ele próprio foi vítima da ineficiência das campanhas de prevenção. "Quando contraí o HIV, nem sabia da existência da PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao vírus da Aids).
Pesadelos e alucinações
Ele sugere que o blog converse com o militante soropositivo Carlos Henrique de Oliveira, 25 anos, fundador do coletivo Loka de Efavirenz (referência a um medicamento que, segundo Oliveira, provocava efeitos colateriais violentos nos usuários, como "pesadelos e alucinações"). "A proposta dele é terrorista mesmo", afirma Beuclair. "Não adianta ir no diálogo: quem são eles na The Week? (boate cujo ingresso, para quem não é "membership", custa R$ 40 "seco", ou R$ 80 "consumíveis").
Oliveira conta que, apesar de trabalhar com saúde pública (na área administrativa), ele só recebeu o diagnóstico da infecção pelo vírus HIV em 2014, quando já estava com os sintomas da Aids. "O erro nem é no programa estadual, mas no do País, que enxerga o HIV apenas pelo aspecto biológico: dá o remédio e pronto." Ele afirma que a mulher negra tem 2,4 vezes mais chance de adoecer de Aids.
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.