Usuário de app de relacionamento gay explica a héteros como funciona busca
Paulo Sampaio
16/06/2019 05h00
(Foto: iStock)
Na última quarta-feira, 12 de junho, estive em uma mesa de bar onde se sentavam mais de 15 pessoas solteiras e muito animadas. Nenhuma delas parecia se levar a sério e todas riam da comemoração às avessas do Dia dos Namorados. Entre homens e mulheres, havia quatro gays e onze heterossexuais — mas chegava e saía gente o tempo todo. À dada altura, uma das mulheres do núcleo duro dos que ficaram a noite toda (Camila*), que é heterossexual convicta, mostrou-se intrigada com a quantidade de vezes que seu vizinho na mesa consultou um aplicativo de relacionamento gay.
Camila tem 42, é física acadêmica, tinha os cabelos curtos e revoltos presos em um rabo pequeno, usava um vestido amplo com estampa de flores miúdas e vestia um sapato estilo boneca. Caio*, 34, que disse trabalhar em um escritório de arquitetura de interiores, usava uma calça reta de sarja cinza clara da grife Bolovo; tênis Adidas Stan Smith e camiseta básica Hering, não muito justa, mas o suficiente para marcar os músculos definidos.
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"Você já conseguiu algum namorado?", pergunta Camila. Caio ri, incrédulo, e responde: "Namorado?" Sem graça, ela pede a ele que explique "como funciona o app": a acadêmica quer saber o que se oferece ali, o que se busca, o que é valorizado, o que é equivocado. Caio passa a explicar, e em pouco tempo o flanco heterossexual do grupo o bombardeia com suas curiosidades até que, enfim, aquele passa a ser o assunto da noite.
Fotografia
"Foto é fundamental, de preferência com rosto", diz Caio. Camila pergunta: "Como assim, com rosto?" Ele conta que boa parte dos frequentadores dos app postam fotos sem cabeça, apenas do peito descamisado, das pernas torneadas ou dos músculos definidos do braço. O lado hétero da mesa ri, sem entender que função pode ter um "homem sem cabeça". "Como o objetivo da maioria é sexo, o importante é ter um corpo em dia", explica Caio. Acontece, diz ele, que muitos dos que "têm corpão e estão em condição de exigir, ameaçam": "Sem foto de rosto no primeiro contato, sem resposta."
Segundo o arquiteto, os gays mais detalhistas e ligados em decoração admiram o corpo e o rosto dos retratados, mas também reparam no cenário onde foi tirada a foto. "Uma cortina de banheiro de plástico vagabundo, um armário comprado pronto, 'estilo Casas Bahia', ou uma fotografia cafona de Marilyn Monroe na parede podem colocar tudo a perder."
Nick
Ao contrário do que acontece em aplicativos de heterossexuais, afirma Caio, "em que os homens precisam passar a imagem de segurança, estabilidade financeira e disposição para assumir um relacionamento", é raro ver no dos gays fotos dos caras fazendo carinho em animais selvagens (leões, tigres); entrando em helicópteros; ao lado de carros esportivos; na neve, esquiando; ou de terno e gravata, no escritório. Os gays são mais diretos. "Explica melhor", pede Camila. Ele separa por tópicos:
- Ativo: os nicks que mais atraem são os que fazem referência à masculinidade/virilidade ou macheza, como, por exemplo: "jiujiteiro", "ativo skatista"; "surfista 22cm"; "macho putão"; "dotado pentelhudo"; "100% ativo"; "roludo socador'; "jogo bola". O emoji da flecha pra cima indica "ativo". "Muitos se dizem ativos, mas é 'fake news"', adverte Caio.
Os homens da mesa riem dos tamanhos anunciados dos pênis. Alberto, corretor que trabalha no mercado financeiro, pergunta se os gays andam com fitas métricas no bolso. Caio diz que "a verdade, na vida virtual, nem sempre conta mais do que a capacidade do cara de estimular a fantasia alheia". "Vai dizer que os héteros não fazem isso também? Pode até ser que não falem diretamente no 'dote', porque teriam receio de espantar a gata, mas eles a fazem sonhar, e quando ela vê, tá pelada na cama do cara, no maior love. O fim é o mesmo. O que mudam são so meios." A maior parte concorda, rindo muito.
- Passivo: boa parcela vai direto ao ponto (sem 'fake news'): SóparaativosMESMO; Machopass; Passdot ("muitos não entendem a necessidade de um passivo ser dotado, outros explicam que o tamanho dá a dimensão do prazer que o cara sente ao ser penetrado pelo ativo"); 100% Passivo. O emoji da flecha pra baixo indica "passivo". Muitas flechas para baixo, "passivo radical". Assim como os ativos, muitos falam de suas habilidades na cama e descrevem em detalhes como fazem para levar o parceiro à loucura;
- Versátil: não parece dar muita importância à "posição na cama", embora muitas vezes usa o termo acompanhado de uma preferência: "Versátil Ativo"; alguns passivos rejeitam os versáteis porque querem ativos "puros"; os integrantes dessa categoria usam duas flechinhas do emoji, uma pra cima, outra pra baixo, para definir sua flexibilidade no sexo;
Pênis "gg" como chamariz (Reprodução)
Tipos frequentes:
- Práticos: filtram logo no nick sua preferência física (ou informam o próprio fisico) "Quero Coroas"; "Só Novinhos"; "Curto Urso (gay gordo e peludo)"; "P/ Peludos"; "Negro dot"; "Dot x Dot"; "Magro"; "Bonito e Dot"; "Gato"; "Curto Baixinhos"; "Só p > 1,80";
Foto do tronco e a exigência de idade mínima (Reprodução)
- Destemidos: avisam de saída suas pretensões de sexo desprotegido. Em geral, usam os nicks "sem capa", ou "bare", que vem a ser a forma reduzida da expressão em inglês "bareback" (significa montar cavalo sem sela, ou, no jargão gay, transar sem camisinha);
- Esportistas e amantes da natureza: aparecem nas fotos usando roupas de ciclista e capacete, carregando bikes em trilhas inóspitas, no meio do mato; ou plantando bananeira em uma praia paradisíaca; pelado, o corpo naturalmente sarado (não bombado), embaixo de uma cachoeira virgem;
- Narcisistas: posam para fotos na sala de musculação, em frente ao espelho, ou pedem para alguém clicá-los em plena série de supino; as imagens, no app, podem vir acompanhadas de avisos como: "Só para machos"; "Não seja insistente"; "O silêncio é uma resposta";
- Fetichistas: nas imagens, muitos aparecem de calcinha, jockstrap (cueca estilo tapa-sexo), ou com roupas de couro (o que indica preferência pelo sexo sadomasoquista); eventualmente, os nicks são "bato"; "apanho"; "submisso"; "dominador";
- Pudicos: adiantam que ninguém conseguirá nada com eles enviando fotos sem roupa. "Não mandem nudes. Nem peçam." Muitas vezes, porém, eles próprios aparecem seminus nas fotos dos perfil. "Para boa parte deles, um peito nu sem cabeça é menos revelador (da personalidade) do que uma foto da genitália ou da retaguarda", diz Caio.
- Aditivados: a sigla tkd, referência a "teco", "dar um teco", ou cheirar cocaína, pode estar no perfil de quem tem o pó (e dispõe como aditivo para o sexo); de quem quer; ou de quem vende (tek delivery); 4.2: referência à baseado de maconha (pode vir acompanhado da preferência sexual do perfilado, ou do tipo físico. Ex: Pass 4.2; Baixinho 4.2);
Várias informações, em um mesmo perfil: garoto de programa (boy), macho (luta boxe), cheira cocaína (tkd) e tem local para receber (Foto: Reprodução)
- Baladeiros:surgem nas manhãs de sábado e domingo, em atitude de desespero, ainda sob o efeito de aditivos. Entregam o estado alterado pelo horário da busca, a imprudência das propostas e a urgência por sexo: "mamo já"; "passivo quer rola c/local"; "meto sem capa"; "só se for agora"; "bare now".
- Precavidos: declaram ao fim do perfil o "status" ou "exame" de HIV (os próprios apps oferecem o quesito) "positivo"; "negativo"; "negativo usando PrEP" (referência à Profilaxia Pré-Exposição ao Vírus HIV, medicamento de uso contínuo que previne a contaminação); e "pergunte". Entram nesse item os que lembram aos usuários do PrEP que "isso não significa que eu vou transar sem camisinha";
A expressão "Negativo, usando PrEP" pode significar que o usuário pretende fazer sexo sem preservativo (Foto: Reprodução)
- Hospitaleiros: postam "c/local", o que quer dizer que moram só, ou podem receber em casa; a indicação pode vir acompanhada do bairro: "c/local Bela Vista";
- Profissionais: alguns, para encurtar a conversa, postam logo a sigla GP (garoto de programa), ou a forma reduzida da palavra "massoterapeuta", "masso", que aparece também na versão "tântrico". Outros, deixam a conversa rolar, até que, em determinado momento, teclam: "Só que eu cobro, tudo bem?"
- Homofóbicos e preconceituosos: com a desculpa de "evitar mal estar" no encontro real, eles não se constrangem em revelar restrições politicamente incorretas: "Efeminados, pulem para o próximo perfil: nada contra, mas não curto"; "Não aos que miam"; "Fêmeas não são bem vindas"; "Se você é bicha fashion ou faz coreografia da Madonna, boa sorte"; alguns postam o emoji da placa de proibido ao lado de termos como: "gordos, efeminados, coroas";
- Disfarçados: eles usam eufemismos para mostrar sua relação preconceituosa com a própria homossexualidade: "sigilo"; "discreto"; "casado com mulher"; "homem normal";
- Cabeça: são o contraponto dos que aparecem nos dois itens acima. Rejeitam qualquer tipo de preconceito. "Não aos homofóbicos, mal resolvidos e complicados"; "Tenho fetiche por alfabetizados"; em geral, não são bombados, porque preferem mostrar "cérebro".
- Politizados: colocam abaixo da imagem as hashtags #ELENÃO e #LULALIVRE. Os mais xiitas postam fotos de rosto, "porque são contra a hipocrisia e não têm nada a esconder". Os #ELESIM são mais raros;
Perfil multi-informativo (Reprodução)
Saideira
Cerca de duas horas depois, a explanação de Caio termina. Levou mais tempo do que o resumo por escrito, porque foram retiradas do post algumas das provocações do arquiteto aos "machos hétero". "Ninguém precisa levar o namorado para jantar, oferecer flores e elogiar a noite inteira, para conseguir ir para a cama."
Camila e as outras mulheres hétero da mesa vociferam na direção de Caio: "Se você não pensa em qualidade, só em quantidade, está certo. Boa sorte na sua busca!"
E ele: "Qualidade? E quem disse que uma abordagem 'fofa', com cinema, pipoca e flores garante isso? Boa sorte pra vocês também!" Todos riem, se abraçam e vai todo mundo dormir sozinho.
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.