"Sem agenda", Damares falta a evento de seu Ministério sobre pessoas trans
Paulo Sampaio
19/06/2019 05h00
Damares Alves, ausência sentida em seminário sobre políticas públicas para população trans no Brasil e União Europeia
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, não participou ontem (18) da abertura do seminário "Diálogos Setoriais: Políticas Públicas para População Trans no Brasil e União Europeia", promovido pela pasta em São Paulo. A informação é a de que ela não comparecerá ao evento, que termina hoje.
Seria uma ótima oportunidade de a ministra mostrar o quão próxima ela está da população trans, representada ali por ativistas de diversas áreas. Em junho, se comemora o Mês do Orgulho LGBTQI+, quando São Paulo acolhe a maior parada do país, alegadamente a maior do mundo. "Ela estava sem agenda", justificou o secretário adjunto da secretaria nacional de Proteção Global, Alexandre Magno, que a representou. "O tanto que essa mulher trabalha, você não imagina."
Damares tem dito que está comprometida com os tópicos abordados no evento — empregabilidade, saúde, educação, sistema prisional e leis de identidade de gênero. Por outro lado, o tema do seminário parece divergir da ideologia do presidente Jair Bolsonaro, que já se mostrou francamente homofóbico.
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Sem comentários
Magno explica que é procurador do Banco do Central e foi requisitado para ser secretário no ministério. Como tal, ele se abstém de comentar as declarações polêmicas de Damares — cujos críticos acusam de sustentar posicionamentos retrógrados. Logo que assumiu, ela apareceu em um vídeo afirmando que o Brasil estava em uma "nova era", em que "menino veste azul, menina veste rosa" — o que foi considerado pelos militantes da ideologia de gênero uma afronta.
Advogada, educadora e pastora da Igreja do Evangélio Quadrangular, Damares está também em outra imagem, recuperada do passado, em que afirma que o relacionamento entre duas mulheres é uma "aberração". Mais recentemente, teria interpretado o fim solitário da personagem Elsa, do filme Frozen, da Disney, como decorrência do fato de ela ser lésbica."
Damares diz que a declaração foi tirada de contexto.
Concordância x Tolerância
"Não posso comentar as declarações da minha ministra", diz Magno. "A gente precisa fazer uma distinção entre concordância e tolerância. Não se pode exigir do governo que concorde com todas as posições. Como regra geral, pode se exigir o respeito. Para o ministério, e portanto para o governo Bolsonaro, a população LGBT tem os mesmos direitos de quaisquer outras parcelas da população brasileira. Direitos humanos são universais", garante.
Soa incoerente, já que o presidente chegou a fazer declarações como:
"Não vou combater, nem discriminar, mas se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater."
"Sou preconceituoso, com muito orgulho."
"90% dos filhos adotados (de homossexuais) serão homossexuais ou garotos de programa."
"Só porque uma pessoa faz sexo com o órgão excretor, ela não merece lei de proteção (contra ações homofóbicas)."
"Seria incapaz de amar um filho homossexual; não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que meu filho morra em um acidente de automóvel do que apareça com um bigodudo por aí. Pra mim, ele vai ter morrido mesmo."
"De novo", repete Magno, "não posso comentar as declarações do presidente. Eu tô falando da prática que a gente tem. Do nível onde as coisas acontecem. Nós desenvolvemos políticas para as mais diversas parcelas da população, uma delas a LGBT."
Os mesmos de antes
Infere-se que as ideias do presidente não se verificam na "prática" do ministério. "Não é minha função aqui me manifestar."
Ironicamente, um dos pontos que Magno destaca como positivos no ministério é que o governo manteve a mesma estrutura com relação à política LGBTQI+. "A diretora da secretaria é a Marina, que é transgênero: um ponto relevante. Inclusive, não é a única lá dentro."
Papel de gestor
A professora Marina Reidel, 48, diretora de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais da secretaria de Proteção Global, tem mais ou menos o mesmo discurso de Magno. "Para além do presidente ou da ministra, a gente cumpre o nosso papel de gestor. A gente está trabalhando, a gente tem as pautas, a gente as desenvolve", diz.
Em relação ao material do "Escola sem Homofobia", chamada por correligionários de Bolsonaro de "kit gay" e criticado pelo presidente por, segundo ele, dar lições de sexo a crianças e estimular a pedofilia, Marina diz vagamente que há "muitos atravessamentos" na interpretação da cartilha. "As pessoas não dialogam, vão no senso comum. Então, mesmo sem saber do que se trata, repetem o que muita gente diz sem conhecimento de causa." Uma referência às fake news.
Composto por um caderno e peças impressas audiovisuais, a cartilha tinha como principal objetivo promover "valores de respeito à paz e à não-discriminação por orientação sexual".
Processo pedagógico
Marina garante que Damares não impõe qualquer obstáculo aos projetos da diretoria, inclusive aos que vinham sendo desenvolvidos em gestões passadas. Até apoia. "A gente tem um diálogo tranquilíssimo. Na diretoria, eu às vezes me sento com pessoas que não têm nada a ver umas com outras, e discuto os assuntos na maior civilidade. Foi assim que a gente viu que o maior problema hoje, na população trans, é empregabilidade e violência."
A principal questão com Damares, ela explica, "são os equívocos" de interpretação (das declarações da ministra). "Mas aí é um processo pedagógico. Tem muita coisa do tempo dela como pastora que está reverberando agora."
Marina conta que o seminário estava previsto para ocorrer em janeiro, mas, com a mudança de governo, foi adiado por quase seis meses. Mesmo assim, a ministra não teve agenda.
A diretora trans não revela se é um dos controversos integrantes da comunidade LGBTQI+ que deram seu voto a Bolsonaro. "Ah, isso eu não digo."
Sem retrocesso
Ela sugere que o blog converse com Noellia Barriuso, representante da União Europeia no seminário. Noelia não quer falar. Aponta para Mar Cabrollé, presidente da maior plataforma trans da Espanha.
Mar explica que a situação em seu país é diferente da do Brasil, "porque lá existe consciência política". "Os espanhóis nascem com uma série de direitos conquistados, que eles sabem que não vão perder. Desde criança, existe a consciência de que não será preciso lutar por esses direitos de novo, entende? Por exemplo: vivemos um governo progressista, e temos leis que garantem aos trans integralidade na área de saúde, trabalho, educação e esporte. Mesmo percebendo a aproximação de uma onda ultraconservadora, a gente sabe que, aconteça o que acontecer, não vai haver retrocessos."
A espanhola elogiou a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de criminalizar a homofobia: "Isso repercutiu no mundo todo. É muito louvável que a mais alta instância do poder Judiciário do Brasil tenha votado a favor da proteção do direito de se expressar da comunidade LGBTQI+", diz.
O blog informou a ela também que muitos congressistas argumentaram que o julgamento do STF seria uma usurpação dos poderes do Parlamento. Ela deu uma engasgada.
Como explicar a Mar a natureza do relacionamento entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário no Brasil?
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.