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"Amo ouvir música e dançar enquanto trabalho", diz maquiadora de cadáveres

Paulo Sampaio

02/11/2019 04h00

Aviso: o post abaixo contém imagens fortes.

Em mais de 15 anos dando vida à aparência dos mortos, a necromaquiadora paulistana Carolina Maluf, 33, tornou-se a clássica destinatária de observações como: "Nossa, que profissão mórbida!".

Ela, particularmente, adora. Parou de contar o número de rostos que reconstituiu ou apenas maquiou quando chegou em 8.543. Nina, como é conhecida, se incumbe de todas as etapas de preparação do corpo, desde a tanatopraxia –que é, em resumo, a assepsia do cadáver.

"Esse processo serve pra dar segurança à família na hora de velar. A assepsia adequada mata germes, bactérias, fungos, tudo que poderia causar algum constrangimento às pessoas próximas. A necromaquiagem é a última etapa."

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A necropraxia é o processo de preparação do corpo para receber a roupa e a maquiagem: "Nunca tive diculdade para dormir depois de preparar um corpo" (Foto: Arquivo Pessoal)

Último grande evento

Na maior parte das vezes, Nina trabalha sozinha. "Pode parecer estranho, mas nunca tive dificuldade para comer ou dormir depois de preparar um corpo ou maquiar. Enxergo isso como um dom. O velório é o último grande evento daquele indivíduo, nao haverá outra chance de despedida. Eu me encarrego de dar à família a chance de fazer isso com o máximo de dignidade."
Como todo trabalho muito minucioso, que demanda atenção contínua e, não raro, por horas a fio, a necromaquiagem pode levar o profissional que a executa ao esgotamento. Para não chegar nisso, Nina busca elementos que a ajudem a relaxar ao longo do processo.  "Amo ouvir música e dançar enquanto trabalho. É uma forma de trazer leveza ao que faço."

Trabalho minucioso, que exige atenção contínua (Foto: Arquivo Pessoal)

Nada a ver com frieza

Por "respeito ao emocional", ela diz que não ultrapassa os próprios limites. Se, por exemplo, o morto for um parente querido e se torne impossível fazer a abstração necessária para executar o trabalho, ela o encaminha a um profissional de sua confiança.

"Sem preservar o emocional, eu não trabalho." Por outro lado, ela diz que se sente muito realizada preparando o corpo de uma criança, porque acredita que estará "fazendo o melhor para que aquela mãe se despeça de forma honrosa e adequada". "Isso não tem nada a ver com frieza. Considero um ato de amor pelo próximo."

Vocação descoberta logo (Foto: Arquivo Pessoal)

Influência do avô

Mãe de cinco filhos, Nina é mulher de um médico naturopata e vive com a família em Porto Alegre. O marido trabalha com ela, e o assunto em casa é morte de manhã, morte à tarde, morte à noite — as crianças já se acostumaram com o ofício dos pais. A necromaquiadora diz que sua caçula, de 9 anos, volta e meia pergunta: "Quantos corpos você fez hoje, mãe?"

A própria Nina era criança se encantou com a profissão do avô, que era preparador de corpos para o museu de anatomia na USP (Universidade de São Paulo). Queria ser legista, mas a gravidez do primeiro filho, aos 16 anos, pôs fim ao sonho de fazer medicina. 

"Não daria para conciliar. Procurei diversas alternativas até que uma tia, que era enfermeira e sabia que eu queria trabalhar com mortos, me deu de presente o curso de tanatopraxia. Embora fosse bem ruim, serviu para mostrar que era aquilo que eu queria fazer na vida", lembra.

Ela então cursou biomedicina, enfermagem, fez pós em tanatologia e cuidados paliativos. No momento, está no início de um doutorado em "morte, luto e compostagem humana".

Esfacelamento facial

Não, diz Nina, não existe maquiagem padrão. Quem determina o quanto ela carregará nas tintas é a família do morto: "Se pedirem maquiagem de palhaço, eu faço. Aconteceu, aliás. Já fiz também drag queen, mulheres de gosto extravagante…" 

Embora se suponha que os mortos não sofram de alergia, Nina diz que os produtos que utiliza nas maquiagens são os mesmos dos vivos –e não tinta comum. "O que muda é como os produtos são usados. As técnicas aplicadas não têm nada a ver com as de maquiagem convencional", explica.

Nada a deixa mais entusiasmada do que um caso de esfacelamento facial. "Amo recuperar rostos destruídos, deixá-los como eram. Há pouco tempo, fiquei aproximadamente seis horas no crânio de um homem que morreu depois de ser atropelado. Foi fantástico. Ficou perfeito", conta.

Seis horas no crânio de um homem que teve o rosto esfacelado em acidente (Foto: Arquivo Pessoal)

Sem detalhes violentos

Apesar do empenho, Nina diz que prefere não tomar conhecimento do que aconteceu exatamente com a pessoa, para não se deixar levar pela emoção. Tudo o que ela soube em relação ao caso acima foi que a vítima havia sido arremessada em um atropelamento, e esfacelou o rosto em um poste. Ponto.

Nesse caso, o valor da preparação e recuperação pode ser mais alto do que a média cobrada por Nina pelo trabalho completo — entre R$ 500 e R$ 700. Ela diz que a tanatopraxia leva entre 2h e 6h, e a maquiagem, cerca de 20 minutos.

Um dos destaques do portfólio da necromaquiadora (Foto: Arquivo Pessoal)

Machismo mórbido

Há dez anos, Nina decidiu compartilhar sua experiência e passou a dar aulas e a ministrar palestras por todo o Brasil.

Por conta do machismo na área, fortemente dominada por homens, ela vai lançar em 2020 um projeto chamado Funeral Woman Brasil. "Recebo denúncias de violência e assédio no ambiente doméstico e profissional, de homens que não querem que suas mulheres atuem em um ramo preponderantemente masculino."

Ela diz que, só esse ano, três homens já foram punidos por assédio moral e sexual no trabalho, e cinco estão com seus nomes registrados em fóruns pelo país. "O objetivo é alertar as mulheres para que não admitam esse tipo de discriminação, e também incentivá-las a iniciar carreira no meio funerário. "

Galera do filme de terror

O protejo de Nina dá ainda desconto de até R$ 300 no curso, que tem quatro aulas de imersão e custa R$ 1500. Ela explica que as aulas são práticas, ou seja, o aluno aprende a aplicar as técnicas de maquiagem no morto, ao vivo.

Qual o perfil do público interessado?

"Muito variado. Desde profissionais que buscam se atualizar, até a galera do filme de terror, que desmaia no fim das contas. Tem também os que perderam alguém querido, ficaram muito mal e procuram ver a morte de outra maneira."

Por essas e outras, Nina se dispõe a ser "um pouco de tudo": professora, conselheira, psicóloga, terapeuta, amiga, mãe. Moça de uma versatilidade invejável, entre vivos e mortos.

 

 

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.