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Hoje eu toco em uma vagina que não é a minha, diz parceira de homem trans

Paulo Sampaio

10/11/2019 04h00

Há sete meses, a assistente social Diana Luiz, 33 anos, iniciou uma experiência inteiramente nova em sua vida. Em abril, ela começou a ser relacionar com o fotógrafo trans Pedro Emanoel Lopes, 18 anos, que tinha acabado de fazer a transição para o gênero masculino: "Eu me envolvi, senti desejo, aconteceu", diz ela. "Foi a primeira vez em que toquei uma vagina que não fosse a minha." (A transição de gênero não implica necessariamente na  cirurgia de redesignação sexual, popularmente conhecida como "operação de mudança de sexo").

Diana nunca havia tido um parceiro tão mais novo. Mãe de uma menina de 15 anos, ela era pouco mais do que uma adolescente quando engravidou da filha. Seu relacionamento mais longo não foi com o pai dela, mas com outro homem cis  — identificado com o sexo atribuído a ele no nascimento: os dois ficaram juntos por nove anos, até 2018.

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Diana teve com Pedro uma experiência inteiramente nova: "Eu me envolvi, senti desejo, aconteceu"  (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Trans e travestis

Ela e Pedro se conheceram no ambulatório trans de Niteroi, um serviço que completa um ano no fim do mês e é uma experiência pioneira entre os municípios do Rio — o estado oferece atendimento específico no Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), e complemento no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede). Em Niteroi, uma equipe composta por endocrinologista, psicólogo e assistente social  atende às populações de trans (homens e mulheres) e travestis, uma vez por semana.

Diana é a assistente social e também coordenadora do serviço. Explica que ali se trabalha com hormonioterapia, atenção clínica, pré e pós operatório — não se realiza a cirurgia de redesignação sexual. Nos atendimentos, eles partem do gênero autodeclarado de quem chega. "Respeitamos a subjetividade, estamos preocupados principalmente com o acolhimento", diz.

Atração à primeira vista

Entre os cerca de 180 atendimentos realizados no primeiro ano do ambulatório, estava Pedro Emanoel, que frequentou o serviço durante poucos meses. "Tenho um plano de saúde, vou ao endócrino por lá. Não queria ocupar a vaga de alguém que precisasse mais do que eu" diz ele. O período de frequência foi curto, porém intenso, graças a Diana,  por quem ele diz ter sentido atração à primeira vista: "Eu congelei quando a vi, não conseguia dizer nada. Fiquei 'passado' com o envolvimento dela no ambulatório, o foco no serviço", lembra ele.

Embora tenha deixado claro sua atração por ela ("eu ficava vermelho, nervoso, sem fala"), Pedro não via retorno. "Eu pensava: 'Tô zerado"', lembra. O episódio que os aproximou foi a recusa de um farmacêutico em vender o medicamento da hormonioterapia, mesmo com a apresentação da receita médica. "Foi uma atitude claramente transfobica", diz ele. Na ocasião, apesar de Pedro não frequentar mais o ambulatório, Diana o acudiu. "Nunca me senti tão feliz em ser discriminado em uma farmácia", brinca ele.

Discriminado pelo farmacêutico, que não quis vender o medicamento da hormonioterapia, Pedro apelou para Diana (Foto: Pedro Emanoel/Arquivo Pessoal)

Filme chinês cabeça

Naquele mesmo dia, ele a levou ao ponto de ônibus, olhou-a nos olhos, deu "uma xavecada",  mas nada aconteceu. Pouco depois, tomado de coragem, ele a convidou para assistir a um "filme chinês cabeça". No escurinho do cinema, sua mão caranguejou até à de Diana. Forjando um receio adolescente, ele disse que "estava com vontade de fazer uma coisa", mas não sabia se podia. Ela disse: "Faz, ué". Rolou o primeiro beijo. Cerca de uma semana depois, Pedro a convidou para almoçar em sua casa, fez uma "super" macarronada à bolonhesa, e, depois da sobremesa, os dois acabaram na cama.

"Eu não sabia como ia reagir. Porque a gente foca a genitália, né? Nós fomos ensinados assim", diz Diana, a respeito da primeira vez. "Curiosamente, foi muito prazeroso. Eu não imaginava que minha vagina fosse tão calorosa. Na verdade, eu era muito equivocada, não me masturbava, não fazia nada."

Antes de revelar a sua turma na escola que era homem trans, Pedro adaptou a frase da filósofa francesa Simone de Beauvoir: "Não se nasce homem; torna-se homem" (Foto: Pedro Emanoel Lopes/Arquivo Pessoal)

Tesão lá em cima

Para Pedro, foi mais tranquilo. "Sabe como é começo de relação, o tesão vai lá em cima. Eu não queria deixar aquilo passar, então combinamos mais ou menos uma data." No dia da macarronada, ele ainda morava com sua "mãe transfóbica", mas tudo aconteceu no horário em que ela estava trabalhando.

"Eu gostava de andar sem camisa, nunca tive peito mesmo. Um dia, minha mãe disse que não queria mais aquilo, por causa dos vizinhos. Eu falei que não estava nem aí para os vizinhos. Ela disse: 'Na minha casa, você não vai andar sem camisa.' Eu saí."

Com o pai, que se separou da mãe quando Pedro tinha 4 anos, houve um mal entendido. "Eu disse a ele que era homem, ele respondeu: 'A gente sabe, sempre percebeu isso'. Só que ele pensou que eu estava me declarando lésbica, não trans. Então, precisei usar o método das caixinhas. Em uma eu coloquei o gênero, em outra, a sexualidade. No fim, ele entendeu."

Simone de Beauvoir

Na escola, a professora de sociologia apresentou à turma a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), e citou uma de suas famosas frases: "Não se nasce mulher, torna-se mulher". Pedro, que via na mestra uma aliada, aproveitou para fazer a adaptação da frase para o seu caso. "Pensei que servia pra mim também: não se nasce homem, torna-se homem."

"No dia seguinte, eu cheguei na sala de aula, fui lá na frente e disse: 'Preciso conversar com vocês".  E falei que era homem. Foi muito emocionante. De repente, 50% da turma chorando, teve um abraço coletivo, eu fiquei em estado de êxtase."

Mãe "barata de igreja"

Na casa de Diana, a mãe cristã protestante dela, "barata de igreja", não gostou nadinha da notícia. "Quando ela soube que homem trans tem vagina, ficou louca", conta.

Já Camilly, a filha, "gostou pelo lado da identidade de gênero, porque é bissexual". "Ela é militante, tem maior compreensão das nuances da vida", diz Diana. Em compensação, a menina "teve dificuldade com a diferença de idade (entre Diana e Pedro)". "Ela não aposta na relação não. E se um dia achar um problema, vai falar. Vai dizer que ele está sendo babaca, estúpido, imaturo."

Encantada com o tema

Há até pouco tempo, o foco de Diana eram apenas as políticas públicas de enfrentamento da violência contra mulher. Mas então ela foi chamada para trabalhar na implantação do ambulatório, e se descobriu encantada com o tema. "Tive contato com a literatura e me envolvi muito com essa população. Hoje, meu bonde é trans. Minhas amigas, meus amigos, a pessoa com quem eu me relaciono."

Ela conta que acabou de apresentar uma monografia na PUC-Rio, na qual identifica a violência sócio-institucional nos dispositivos de saúde, e faz uma reflexão sobre o acesso dos trans e travestis à atenção básica. "Eles não têm  garantia de que não vão sofrer preconceito, transfobia, discriminação."

Trans total

Ao pegar o bonde trans, Diana supostamente afastou-se da comunidade dos  heterossexuais cis. Como eles regiram? "Enfrento 'ressalvas"', diz ela. "Alguns amigos dizem: 'Tem gente que atende a população trans, é amiga da população trans, namora a população trans e quer ser trans'."

Ela afirma que não tem a menor intenção de excluir os héteros cis de sua vida. "Não existe isso. Dá na mesma ser hétero cis, gay cis, desconstruído ou orientado, porque tudo é um produto social. Compreedendo a diversidade de gênero do outro e a orientação sexual, não existe problema."

Gosto de pênis

Será que, depois de se relacionar com um homem trans, a ideia de fazer sexo com um heterossexual cis parece banal ou sem graça? "Não. Eu gosto do homem cis. Inclusive eu falo isso pra o Pedro. Ele me pergunta se eu sinto falta do pênis. Digo a verdade: não sinto falta, mas gosto de pênis."

Diana reconhece que o comentário o incomoda. "Ele fica passado, sim, mas é uma questão dele, não minha. Eu não posso dar conta da expectativa, do conflito do outro. Até porque eu nem estudei psicologia."

Por sua vez,

Pedro diz que volta e meia o tomam por um homem gay cis (identificado com o gênero biológico). "É que eu adoro rebolar a raba. Um dia, em uma balada, um garoto sentou no meu colo e começou a me alisar. Eu disse: 'Meu anjo, acho que você não entendeu. Eu sou hétero.' Ele ficou muito desapontado."

Pedro afirma ainda que, depois do tratamento com testosterona, ele passou a se sentir "atraído por falos". "Mas não do homem cis", explica. "Da mulher trans."

Só um abraço

A maioria dos frequentadores do ambulatório é homem trans, como Pedro. O serviço fica em um prédio que abriga vários outros dispositivos de saúde. "Ainda  estamos em fase de capacitação de profissionais, mas como a demanda é muito grande, já começamos a atender", explica Odila Curi, chefe do Departamento de Supervisão Técnico-Metodológica (Desum). No dia em que o blog visitou o ambulatório, treze pessoas estiveram lá. "Tem gente que viaja horas para vir até aqui, e pede apenas um abraço", diz a psicóloga Roberta Labriola.

Da equipe, Diana é a mais empolgada. Fala sem parar sobre os mecanismos sociais que fazem a população trans refém. "A sociedade controla essas pessoas, diz o que elas devem ser, o lugar que devem ocupar, o código que devem cumprir."

Com Bryan Henrique, um dos homens trans que buscaram o ambulatório no dia em que o blog esteve lá (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

A dimensão do sofrimento

Tomada de emoção, ela pergunta se o blog já teve vivência com a população trans: "Você já convidou uma travesti para jantar em sua casa? Para beber alguma coisa em um bar? A galera tem uma vivência de enfrentamento fantástica. O corpo deles é político. Com toda a discriminação no mercado de trabalho, a dificuldade de acesso à saúde, à educação, essa população se mantém com a identidade que faz bem para ela, que traz paz."

Diana não gosta de dizer que foi necessário um "ajuste" para efetivar seu relacionamento com Pedro. "No mundo real, o que eu preciso é compreender o sofrimento do outro. Os entraves, a dimensão desse sofrimento."

Para ela, a sobrevivência dessa população se deve, em parte, ao fortalecimento conquistado no próprio flagelo: "São pessoas que sabem o que é perder. A vivência com eles é rica por isso." 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.