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Paulo Sampaio

Trans já podem registrar nomes sociais em cartórios; preferido é Bruna

Paulo Sampaio

14/07/2018 05h00

Brunna Valin, 43 anos, tinha 14 quando uma travesti que fazia "ponto" na esquina de sua casa sugeriu a ela que adotasse como "nome social" Bruna, com um "n". Porém, depois que ela mesma passou a fazer programa e percebeu que havia oito outras travestis com o mesmo nome na área, o "Bruna" ganhou mais um "n": "Acrescentei para me diferenciar das outras. Os clientes confundiam." Ela conta que, aí, "começaram as piadas": "Bruna, que não é a Lombardi, mas tem um 'n' a mais'. Com o tempo, passei a curtir. Esse 'n' me fez sentir mais empoderada, resistente, visível."

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Brunna Valin em vários momentos (Foto: Arquivo pessoal)

Quase três décadas depois, o nome Bruna (com apenas um 'n', mas a mesma pronúncia) continua sendo bastante popular entre transgêneros. É o que mais aparece, por exemplo, entre as beneficiárias do projeto Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo, criado para promover a reinserção social da população LGBTT em situação de vulnerabilidade. São sete Brunas, em 200 nomes. O segundo lugar é Marcela, com 5. Seguem-se empatadas Amanda, Andrea e Jessica, com quatro. Depois, Bianca, Cristiane, Marcia e Monique, com três. E os mais criativos: Nathyelly, Samellen, Lorhany e Raylana. Os homens trans são apenas 11. Não há consenso entre os nomes: Anthony, Arthur, Bernardo, Eduardo, Enzo, Gabriel, Ian, Karlos Eduardo, Paulinho, Peterson e Theo.

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Ação na Justiça

Apesar de adotar o nome social desde muito jovem, só no ano passado Brunna Vilan fez a retificação em sua documentação. Precisou entrar com uma ação na Justiça e levou dois meses para conseguir, um tempo relativamente curto quando comparado ao da grande maioria dos transgêneros que tentaram: "Havia muitos documentos e certificados com o meu nome social. Eu me tornei uma pessoa pública, então era mais fácil provar a necessidade de oficializar", explica ela, que hoje é coordenadora do estado de São Paulo pela Aliança Nacional LGBT e orientadora sócio-educativa do Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD).

Agora já não é preciso entrar na Justiça, nem esperar tanto. Desde julho do ano passado, os transgêneros passaram a ter o direito de alterar o nome e o gênero no registro civil diretamente no cartório — sem necessidade de fazer a cirurgia de redesignação de sexo ou de autorização judicial. O provimento 73 da Corregedoria Nacional da Justiça (CNJ) regulamenta uma decisão tomada em março deste ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Na ocasião, seis ministros votaram a favor do direito a mudar o nome e o gênero no registro, incluindo a presidente do supremo, Carmen Lúcia. Foram votos vencidos o relator, Marco Aurélio Melo, e os ministros Alexandre Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Marcela não, Marcelle

Procurada pelo blog, assessoria da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg) afirmou que não tinha condição de fazer um levantamento dos nomes mais escolhidos pelos transgêneros para alteração no registro civil porque a regulamentação do CNJ é muito recente. Tampouco conseguiram verificar pelos nomes alterados por intermédio de ação judicial. Informaram apenas que eram 240 em São Paulo.

A caixa de supermercado trans Marcelle, 52 anos,  batizada Marcelo, recebeu com muita satisfação a notícia da mudança. "Menos um constrangimento para passar", diz.  Ela conta que em 2004 entrou na Justiça com um pedido de alteração do nome, mas nunca conseguiu. "Nem o advogado sabia que argumentos poderia usar", lembra ela, rindo.

Marcelle diz que a princípio pensou em usar socialmente o feminino do nome que sua mãe havia escolhido para batizá-la. Marcela: "Mas alguém muito próximo me disse que eu não tinha uma personalidade suficientemente forte para envergar esse nome. Então, optei pelo sufixo 'elle'. Nomes com essa terminação, Danielle, Gabrielle, Michelle têm mais a ver com gente enjoada, sensível, como eu", ela acha.

Consulta à mãe

O caso da modelo Lea T, nascida Leandro, é similar ao de Marcelle. Seu agente, José Macedo, conta que Lea consultou a mãe sobre o nome que deveria adotar. "Como na certidão de nascimento ela era Leandro, a mãe sugeriu Leandra. Lea é nome artístico", explica Macedo.

Ele afirma que a alteração do nome no registro saiu há cerca de dois anos, depois que a modelo se submeteu à cirurgia de redesignação de sexo. "Na Italia foi bem mais rápido; aqui demorou um tempo ainda."

A modelo Lea T. consultou a mãe antes de escolher o nome, que vem de Leandro; "No registro ela é Leandra", diz José Macedo, agente da modelo. "Lea T é nome artístico." (Foto: Marlene Bergamo/Folhapress)

João não existe

No mundo politicamente correto, não é de bom tom perguntar o nome de batismo de uma pessoa transgênero. Considera-se uma ofensa. "Se uma pessoa nasceu João, mas se identifica como Maria, é assim que se deve chamá-la. Querer saber o motivo pelo qual ela decidiu mudar, ou mesmo detalhes sobre a escolha do novo nome, é transfóbico", acredita a atriz Fernanda Custódio, 28 anos, que se define como mulher trans. "O nome de batismo é uma escolha da família, que rejeita a sua transexualidade", acha ela.

Por um tempo, quando trabalhava como garota de programa e não queria que os colegas de faculdade soubessem, Fernanda se apresentava como Suzy.

Ela conta que acompanhou o noticiário sobre a decisão dos ministros do STF em favor da mudança de nome e gênero, e que assim que tiver oportunidade fará a alteração no registro civil. "Nasci em São Caetano do Sul, fui registrada lá, então preciso que o cartório daqui faça uma solicitação para o de lá. Ainda não tive tempo de ir atrás disso", explica.

Fernanda Custódio explica que perguntar nome de batismo é "transfóbico" (Foto: Arquivo pessoal

Gênero: neutro

Fernanda é companheira de Guttervil, artista que foi lésbica e agora se define como agênero. Quando se referem a Gutter,  Fernanda e seus amigos usam um "x" no fim do substantivo, do adjetivo ou do pronome, para evitar caracterização de gênero. Gutter diz que a decisão do STF não contempla casos como o delex. "No cartório, a pessoa tem de escolher entre masculino e feminino. Não existe a possibilidade de 'neutro"", diz.

No final de 2013, a Alemanha tornou-se o primeiro país europeu a oficializar o terceiro gênero. Com isso, os pais do bebê podem registrá-lo como "masculino", "feminino" ou "indefinido". Assim, no futuro a pessoa escolhe se prefere ser definida como homem ou mulher. Ou mesmo seguir com o sexo indefinido.

Ex-lésbica, agora agênero, Guttervil aguarda a possibilidade de registrar-se no cartório como "neutro" (Foto: arquivo pessoal/Laysa Alencar)

Dupla alteração e polêmica

Antes do provimento 73 da CNJ, qualquer pessoa que sofresse constrangimento social por causa do nome poderia pedir na Justiça sua alteração  — não só os que enfrentavam problema com gênero e sexualidade. Porém, segundo a advogada Laira Rachid, professora de direito de família, os transgêneros precisavam não só da autorização para a mudança de nome, mas também para a de sexo — e nem sempre os juízes eram favoráveis. "Mesmo que conseguisse, depois de muitos anos, autorização para mudar o nome no registro, a pessoa continuava vulnerável a situações vexatórias", lembra a advogada.

Laira considera a decisão do STF um avanço em favor da dignidade humana e de cidadania, sem contar a desburocratização do processo. Entretanto, ela acredita que a normatização pode levantar polêmica. Afinal, em termos jurídicos e sociais, uma pessoa deixa de existir e passa a ser outra. "É preciso pensar em mecanismos para coibir fraudes por parte dos oportunistas. Na Argentina, por exemplo, veiculou-se o caso de um homem que declarou pertencer ao gênero feminino para poder se aposentar mais cedo."

Serviço

De acordo com a tabeliã Fernanda Leitão, do 15º cartório de notas do Rio de Janeiro, o pedido de alteração do nome pode ser feito em qualquer cartório, não necessariamente no que a pessoa foi registrada; não é possível mudar o nome de família, apenas o pré-nome. A taxa "básica" R$ 261 (mas pode variar dependendo do estado e do cartório; se for em outra cidade, por exemplo, eventualmente são cobrados "extras"); segundo a assessoria da CNJ, em "caso de comprovada situação de pobreza, o interessado pode valer-se das hipóteses de gratuidade da Justiça". Ainda pelo que estabeleceu a corregedoria, o prazo máximo para a entrega da nova documentação é cinco dias. Caso o solicitante seja menor de idade, é necessário a autorização dos pais; se for casado, o consentimento do cônjuge.

O interessado deve comparecer ao cartório munido da certidão de nascimento atualizada; cópia do RG, do CPF e do título de eleitor; comprovante de endereço; certidão do distribuidor cível e criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos.

 

 

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.