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Paulo Sampaio

Com medo do preconceito, idoso LGBT pode voltar pro armário, diz geriatra

Paulo Sampaio

18/12/2019 04h00

Idosos da comunidade LGBT não podem receber dos profissionais de saúde um atendimento igual ao oferecido a heterossexuais da mesma idade. Palavra de especialista. "Defender a isenção, nesse caso, significa fechar os olhos para a diferença", afirma o geriatra Milton Crenitte, doutorando em Ciências na Universidade de São Paulo.

Para Crenitte, "não existe estado mágico de neutralidade". "Se o atendimento ao paciente LGBT for igual, não se resolvem questões próprias dele." Em uma aula ministrada na última sexta (6), no Hospital Sirio-Libanês, em São Paulo, Crenitte lembrou que gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros da terceira idade sofrem de "dupla invisibilidade". "Além do preconceito que os velhos já enfrentam por causa da idade, há ainda o relativo à orientação sexual e à identidade de gênero."

O geriatra afirma que o indivíduo dessa população apresenta mais chances de não ter se casado, de não ter tido filhos e de viver só, sem ninguém para apelar em caso de emergência. "O impacto psicossocial sobre eles é muito maior."

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A cantora Mylena Jardim (centro), depois do show que ofereceu para a ONG Eternamente Sou, de acolhimento à população LGBT na terceira idade; na plateia, beneficiários e voluntários de todas as idades (Foto: Matheus Braz/Divulgação)

Volta para o armário

Segundo Crenitte, é comum haver resistência por parte dos idosos, de uma maneira geral, à ideia de viver em uma ILPI (Instituição de Longa Permanência para o Idoso), sobretudo pelo receio de se sentirem "institucionalizados" e "assexualizados". Entre os LGBT, especialmente transgêneros e transexuais, existem relatos de pessoas  que voltaram para o armário depois dos 60 anos, com medo de serem discriminados no atendimento médico. "Essa desconstrução da identidade, ainda mais na terceira idade, pode precipitar um quadro de depressão ainda mais severo do que o que muitas vezes acomete os idosos."

Enquanto não publica o resultado de um estudo que iniciou em agosto deste ano sobre envelhecimento e acesso à saúde, Crenitte apresentou na aula dados de estudos feitos fora do Brasil.

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos pela Lambda Legal, organização fundada em 1973 em defesa dos direitos da população LGBT, revelou que 56% dos gays, lésbicas e bissexuais entrevistados experimentaram algum tipo de discriminação no atendimento médico. O número sobe para 70%, quando os entrevistados se autodeclaram transgêneros ou transexuais.

Amor ou amizade?

Na experiência de Crenitte, "tudo o que esse idoso necessita é de um lugar onde ele seja incluído, respeitado, querido". O geriatra fala da importância de se informar aos profissionais da área de saúde sobre as especificidades no atendimento a esse paciente. Só para citar um exemplo básico, Crenitte diz que muitas vezes os médicos se esquecem de que mulheres trans ainda podem ter próstata, e homens trans, útero e ovários.

Diz o geriatra que, em relação à abordagem dos médicos a essa população, a regra é "perguntar mais do que presumir [a heterossexualidade]". As perguntas não devem ser diretas, e sim amplas. Exemplo: "Como é sua família?" "Tem irmãos?" "Você é casado" "Filhos?".  Se são duas senhoras na mesma consulta, o médico pode indagar afetuosamente: "Há quanto tempo vocês se conhecem?", ou "Parece que vocês significam muito uma para outra", a fim de descobrir se está diante de uma relação de amor maior do que amizade.

A ideia não é "arrancar o paciente do armário", explica Crenitte, nem obrigá-lo a se assumir. Apenas tranquilizá-lo, caso haja percepção de receio de se abir. Um dos facilitadores para deixar a pessoa à vontade para falar, por exemplo, sobre soropositividade, estando ela dentro do armário, é adotar uma estratégia de comunicação acolhedora. "Broches com as cores do arco-íris, bandeirinhas na lapela, no crachá, cartazes discretos na sala de espera, enfim, algo que sinalize que o ambiente é amigável ajuda muito", explica Crenitte.

Chegando junto

Em São Paulo, o Centro de Referência do Idoso (CRI), ambulatório do Sistema Único de Saúde criado há 15 anos em parceria com a Associação Congregação de Santa Catarina, implementou em agosto o projeto Amigo da Diversidade.

O objetivo é "tornar os colaboradores que atuam na unidade mais sensíveis às questões de gênero e sexualidade, por meio da garantia de um melhor acolhimento às suas particularidades".

"A intenção é promover acesso à população LGBT", informa a assessoria do centro de referência, que realiza 22 mil atendimentos por mês, em 18 especialidades médicas diferentes.

Show beneficente

Crenitte sugere ao blog que procure também o administrador Rogério Pedro, 29, que há dois anos se dedica ao projeto Eternamente Sou, uma ONG de acolhimento à população LGBT 50+. Na sexta passada, a ONG reuniu 140 pessoas em um evento beneficente de Natal, com show da cantora Mylena Jardim, vencedora da 5ª temporada do programa The Voice Brasil, em 2016.

Na plateia, a professora aposentada Dora Cudignola, 67 anos, conta que perdeu a parceira para um AVC e, desde então, não teve mais relacionamentos afetivos. Apesar de se considerar "sortuda" por ter uma filha (também lésbica) que a ampara, e por gozar de saúde e condições financeiras para viver com algum conforto, Dora afirma que, depois que descobriu o projeto de Rogério, "tudo ficou mais bonito".

"Nós, idosos, precisamos de alguém que nos ouça. Muitas vezes o jovem nos vê, mas não tem interesse na história que nos trouxe até aqui. Quando existe um grupo que te dá força, não tem idade, não tem nada que nos coloque para baixo. Eu sou uma mulher feliz de ter encontrado esse grupo."

Para o professor Ricardo Alves da Silva, 53, também beneficiário, "a ONG  foi importantíssima [na vida dele]". "Conheci muita gente que se tornou amiga, e hoje eu me sinto mais forte para expor minha homossexualidade. É muito bom encontrar pessoas com interesses parecidos."

Geral do show de Mylena Jardim para a Eternamente Sou, no Bexiga (Foto: Matheus Braz/Divulgação)

 Nada, nada, nada

Rogério Pedro conta que foi criado em um lar evangélico e ainda estava no armário, aos 14 anos, quando começou a ter curiosidade sobre a vida que os homossexuais levavam. "Eu me sentia culpado, achava que poderia ir para o inferno, e então quis saber como os gays viviam, como era a relação deles com a família, com a sociedade, até que cheguei à velhice."

Ele diz ter obtido "relatos tristes, histórias de isolamento, de solidão, de pessoas que tiveram a vida interrompida por causa de violência, homofobia, discriminação". "Aí eu pensei: 'Será que existe suporte para essa população?"'

A resposta foi "não". "Não tinha nada, nada, nada." A partir de então, ele começou a redigir, ainda no armário, o projeto de acolhimento para idosos. Rogério não se sente seguro para falar da Eternamente Sou como um equipamento em pleno funcionamento porque ainda corre atrás de estrutura para o atendimento.

Café, música e dança

Por enquanto, ele promove o "Café e Memórias", um evento de confraternização realizado uma vez por mês, e ainda uma oficina de canto e coral e outra de expressão corporal. Conseguiu suporte para orientação jurídica e atendimento psicológico aos beneficiários.

Em um primeiro momento, as reuniões ocorreram em um centro de cidadania da Prefeitura, na região da Consolação, em São Paulo, que acabou sendo descontinuado, e também no Museu da Diversidade, na estação República do Metrô.

Rogério Pedro, o ator Celso Rabetti, o youtuber Luís Baron, do canal "Tô Passado", e a especialista em gerontologia Valéria Takahashi, todos voluntários (Foto: Matheus Braz/Divulgação)

Fundos e pesquisa

A Associação da Parada Gay disponibilizou sua sede para a ONG, mas, apesar das boas intenções, o lugar não é espaçoso o suficiente para abrigar os eventos. Em 2020, Rogério quer inaugurar um centro próprio, que promova atividades de domingo a domingo. "O show da Mylena, que é nossa amiga há algum tempo, já faz parte de um empenho para juntar fundos", diz.

Por sua vez, Milton Crenitte diz que já angariou em sua pesquisa cerca de 6.500 respostas,  1.000 delas de LGBTs. O médico espera divulgar o trabalho em fevereiro, quando completar seis meses. Quanto mais gente responder ao questionário, mais próximo da realidade ficará o resultado.

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.