Sucesso de audiência na Globo, ex-atriz mirim tem péssimas lembranças da TV
Paulo Sampaio
01/02/2018 05h00
Pessoalmente, Patrícia Ayres é uma figura inquieta, falante, muito engraçada. Exatamente o oposto do personagem que a celebrizou na TV, em sua curta carreira de atriz mirim. Na novela "A Pequena Órfã" (Teixeira Filho, 1968), Patrícia levava milhões de telespectadores a chorar copiosamente no horário nobre. Fazia o papel de Toquinho, uma pobre garotinha que fora abandonada pelos pais e acabou nas mãos da malvada Elza (Riva Nimitz), uma mulher que explorava crianças e as obrigava a pedir esmola na rua. Sempre que podia, Toquinho fugia para a casa do bondoso Velho Gui (Dionisio de Azevedo), que tentava protegê-la, em vão. A menina acabava sendo descoberta por Elza, que lhe aplicava surras homéricas. Foi ao ar na extinta TV Excelsior e, três anos depois, reprisada pela Globo.
"Eu passava a novela inteira apanhando, ou fugindo da Elza. Todo mundo chorava, inclusive eu", conta ela, rindo muito. "Aquilo tudo era horrível. Na época, quase não havia atrizes mirins, eu fui a primeira com aquele destaque, então ficava ainda mais exposta. Não podia sair na rua porque vinha uma multidão atrás de mim; recebia ameaça de sequestro e, na escola, tinha de ficar na sala da diretora durante o recreio", lembra Patrícia, hoje com 55 anos.
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A novela era um fenômeno de audiência. No auge do sucesso, um jornal publicou na capa que os dois maiores salários do país eram o de Pelé e o de Patrícia. "A Riva Nimitz ficou com tanta raiva que se descontrolou em uma cena e me empurrou de verdade, com muita violência. Eu bati com a boca em um móvel e quebrei os dois dentes da frente", lembra. "Tiveram de parar tudo, imagina, eu chorava muito! Naquele tempo, as crianças eram crianças mesmo. A gente está falando de 50 anos atrás."
A chorosa Toquinho, em "A Pequena Órfã"; e a alegre Patrícia da vida real, no Carnaval de 2017 (Fotos: Arquivo Pessoal)
Olho de vidro
Na ocasião, ela tinha 5 anos. Mas o martírio começou quando ainda estava com 3. Filha do ator Percy Ayres (1932-1992), Patrícia estreou na TV fazendo o papel de Violeta na novela "Somos Todos Irmãos", de Benedito Ruy Barbosa (1966), baseada no romance "A Vingança do Judeu", de J.W. Rochester. Para que as cenas da "princesinha Violeta" saíssem a contento e a atriz mirim não chorasse durante a gravação, o diretor prometia presentes: "Descia aquele microfone no meio do estúdio, na minha direção, junto com a voz dele: 'Escolhe o que você quiser, eu te dou'. Sabe o que eu respondia? 'Quero a minha chupeta'."
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Em 1968, antes de estrelar "A Pequena Órfã", ela fez a personagem Miita em "O Direito dos Filhos" (Teixeira Filho). A dada altura, quando saiu de São Paulo para passar um final de semana na casa de uma tia, surgiu no jornal a notícia de que ela havia sido raptada. "Quando chegava carta um pouco mais pesada em casa, minha mãe abria no quintal, com medo do que pudesse estar lá dentro", conta.
Nos bastidores, tudo era "assustador". "Eu tinha medo da mão daquele ator… Castro…(ela só consegue se lembrar dos protagonistas: no caso, era Castro Gonzaga). Era enorme. O Sérgio Cardoso me colocava no colo e tirava o olho de vidro dele para fazer graça, eu ficava aterrorizada!" (Considerado um dos maiores atores de teatro de seu tempo, Sérgio Cardoso fez parte do prestigiado Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e atuou em espetáculos como Entre Quatro Paredes; A Opera dos Três Vinténs; Do Mundo Nada se Leva; e Seis Personagens à Procura de um Autor. Tornado muito popular graças à TV, ele morreu aos 47 anos, quando fazia o papel de Luciano na novela Meu Primeiro Amor (Walther Negrão, 1972), na Globo. Depois de sua morte, houve rumores de que ele teria sido enterrado vivo, mas parentes e amigos negaram veementemente).
Manchete de jornal: o rapto que nunca houve (Foto: Arquivo pessoal)
Percy Ayres tinha muito orgulho da filha. "Minha mãe era nordestina, e meu pai, alemão; eu era a única loira das cinco filhas. Ele me levava pra baixo e pra cima como se fosse um troféu." Isso só tornava as coisas mais difíceis. Patrícia não tinha espaço para dizer que não queria mais fazer novela. "Eu ainda tenho nome duplo, o segundo é Auxiliadora, que é a pessoa que 'auxilia', que não pode dizer 'não'."
Leila Diniz e Nelson Ned
Para não dizer que não sobrou de fato nada que valesse à pena comentar, ela lembra com muito carinho de sua amizade com a atriz Leila Diniz, que encabeçava o elenco de "O Direito dos Filhos". O espírito libertário de Leila encantou a menina, que se sentia literalmente sufocada naquele ambiente. "Eu tinha crises de asma de ir parar no hospital. A Leila me protegia, me ensinou a ser independente, dizia para eu nunca deixar que ninguém gritasse comigo. Ficamos muito amigas. Ela mandou fazer uma passagem do meu estúdio até o dela, para eu fugir pra lá caso estivesse em apuros. Se eu me sentia muito exausta, ela me levava para comer "barquinha" (pão na chapa)." Quando Leila morreu, em 1972, em um desastre de avião, tiveram que dar a notícia "aos poucos" para Patrícia. Agora, ela estava sem sua única amiga no set.
Muito próxima de sua irmã Bárbara, um ano mais nova, Patrícia impunha como condição para ir para o estúdio que ela também fosse. "Eu era obrigada a estar nos bastidores o tempo todo", lembra Barbara. "Nunca me esqueço de uma cena com a Cacilda Becker, ela era uma professora de balé, e eu quietinha assistindo. Quando gritaram 'Gravando!', minha mãe me jogou lá dentro, eu entrei rodopiando. A Cacilda Becker já me pegou e rodopiou. Se tinha um parabéns, tava eu de figurante, cantando parabéns; se tinha um monte de criança descendo uma ladeira, tava eu junto.."
Patrícia e Bárbara, com Pelé (Foto: Arquivo Pessoal)
Aberração milagrosa
A rejeição de Patrícia ao estrelato soa ainda mais remota quando se pensa no enorme contingente de garotinhas que hoje se desesperam para mostrar seus dotes cênicos diante das câmaras de TV — e que, enquanto não conseguem, tentam ficar famosas nas redes sociais. "Eu me sentia uma aberração", lembra Patrícia, que em "Meu Pedacinho de Chão" (Benedito Ruy Barbosa, 1971), outro grande sucesso, ela era parada na rua por fãs que a consideravam "milagrosa".
Para dar uma dimensão do prestígio de Patrícia, o "reclame" da novela trazia uma foto dela, e não dos astros que encabeçavam o elenco — Maurício do Valle, Renée de Vielmond e Castro Gonzaga. "Eu apresentava um quadro no programa do Silvio Santos com o Guto, filho do Moacyr Franco, que era um pesadelo. Eu vomitava e fazia cocô na calça. E quando eu tive de dançar com o Nélson Ned? (Cantor anão muito famoso na década de 1970)?"
Anúncio da novela "Meu Pedacinho de Chão", produzida pela TV Cultura em São Paulo e exibida pela Globo (Foto: Arquivo Pessoal)
Ao todo, foram sete novelas e um filme (a versão cinematográfica de "A Pequena Órfã"). O "basta"de Patrícia foi aos 11 anos, quando ela bateu o pé e disse que já era suficiente. Segundo dona Nair, a mãe dela, "a princípio, aquilo parecia uma brincadeira, as cenas eram simples, mas com o tempo foi ficando pesado para ela". "Virou uma obrigação, uma tarefa. E tinha a escola, também, onde a vigilância era grande porque eles tinham medo do convívio. As outras crianças tiravam sarro. Falavam que um dia ela era órfã, no outro milionária. Tudo isso embaralhava a cabeça dela."
Dona Nair conta que a filha estava cada vez mais assustada. "Ela chorava fazendo os personagens e também porque não queria fazê-los. Ao mesmo tempo, na rua, as pessoas queriam tocar nos lugares onde a Patrícia passava. Um dia, ela disse: 'Pai, eu não quero mais'. E a gente respeitou, claro, porque estava criando uma filha, não uma atriz."
O espectro da TV ainda perseguiu Patrícia Ayres por quase dez anos. "Eu já tinha tipo 20 anos, quando o Dennis Carvalho (diretor da Globo) me chamou para fazer um papel em 'Voltei pra Você' (1983, Benedito Ruy Barbosa). Era uma espécie de continuação de "Meu Pedacinho de Chão"*, e eu faria a Pituca grande. Meu pai ainda tinha esperança que eu topasse, mas eu dizia: 'Pai, eu não vou ficar dando bicota em um galã que eu nem conheço, Deus me livre'. Eu gostava de bagunça, de beber com as amigas, de pegar meus surfistas!" (*A Globo produziu uma versão de "Meu Pedacinho.." em 2014).
Padaria artesanal
Patrícia marcou a conversa com o blog em uma "padaria artesanal" em Perdizes, zona oeste de São Paulo. O lugar é muito acolhedor, cheio de pequenos ambientes, e nós nos instalamos em uma mesa embaixo de uma clarabóia: servem-se pães com fermentação natural, mutigrãos, e de castanha, linhaça, alecrim, azeitona e geleia de pimenta feita ali; há vários frasquinhos de sucos detox na geladeira, tudo que Patrícia adora. Ou passou a adorar…
Ela conta que há até quatro anos tinha 28 quilos a mais, era sedentária, e não saía de casa sem a bombinha para a asma. Não frequentava médicos, "para não ouvir a verdade". "Minha circunferência abdominal era tão grande que no metrô, mais de uma vez, me ofereceram lugar achando que eu estava grávida", diz ela, que nunca teve filhos, por opção. "Só gosto da criança dos outros", afirma ela, que durante 25 anos foi sócia das irmãs em uma pré-escola.
Casou-se duas vezes, mas declara que não é do ramo. "Não sou de me apegar, nem tenho esse medo que muita gente tem de acabar sozinha. Sempre imagino que vou morrer aos 100 anos, dançando. Uma vez, num carnaval, eu disse ao meu primeiro marido que ia para um retiro de ioga e fui com amigas para Itacaré." Seu último marido, um personal trainer, era 14 anos mais novo. "Sempre peguei uns bonitos." E como era estar acima do peso ao lado de um marido professor de ginástica? "Horrível."
Montagem feita por ela mesma: antes de fazer o primeiro detox, perder 28kg e deixar para sempre a bombinha da asma (acima), que usava direto e acabou se tornando um vício, assim como o descongestionante nasal: "Nunca mais usei Berotec, nem Omeprazol (para gastrite)."
Verdadeira vocação
Um dia, depois de muito tempo sem ânimo, cansada, e achando que sofria de uma doença grave ("eu evacuava 25 vezes por dia") ela acompanhou uma amiga em uma consulta à nutricionista. Lá, aceitou a sugestão de fazer uma dieta de desintoxicação. "Descobri que tinha 'alergia alimentar' a uma série de coisas. A reação de abstinência foi tão forte que eu me sentia uma ex-drogada. Tive até herpes-zoster (doença viral que ataca determinados nervos e produz lesões na região afetada). Mas depois de uns dez dias, eu não usava mais a bombinha, nem tomava Omeprazol (medicamento indicado para gastrite e úlcera gástrica). E minha relação com o que eu comia mudou para sempre."
Pouco tempo depois, ela fez um curso de "alimentação saudável" que a levou a chorar — não como a Toquinho, mas de "felicidade". "Eu tinha descoberto minha verdadeira vocação", conta ela, que até então "não sabia passar um café". "Tentei um dia, para oferecer para o meu sogro, e mexi com muita força, rasguei o filtro de papel."
Problema espiritual
Hoje, depois de fazer muitos cursos e de estudar a fundo a biodiversidade dos alimentos, ela se tornou uma "personal chef" funcional, especializada em comida saudável. Vai a casa das pessoas e prepara cardápios veganos. "Delicadamente, mostro que você não precisa ter morte nenhuma à mesa." De alguma maneira, cozinhar é uma espécie de redenção dos tempos em que era uma "criança doente". "Eu tinha rejeição à lactose e não sabia. Naquela época, não se falava nisso. Eu tomava leite, vomitava. Meu pai achava que era um problema espiritual, tipo um encosto." A falta de energia dos outros tempos passou completamente. Hoje, ela vai e volta para as casas em que cozinha a pé.
A chef, devidamente paramentada (Foto: Arquivo pessoal)
Agora Patrícia Ayres quer voltar a ser, quem diria, uma campeã de audiência. Só que no Youtube, falando de comida. O nome do programa é "Sabores que Transformam", e deve estrear até o final do primeiro semestre. Por enquanto, ela faz como as atrizes mirins em início de carreira: posta no 'insta' (patyauxi) fotos e vídeos de seu trabalho. "Quero mostrar às pessoas que é possível comer alimentos saudáveis e saborosos", diz, já em ritmo de divulgação. Em sua versão cinquentona, Patrícia está indiscutivelmente mais alegre.
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.