"Propus que ele transasse com os olhos vendados", diz deficiente física
Paulo Sampaio
08/05/2019 04h46
Já havia algum tempo que a psicóloga Irlanda Maia estava separada do marido, com quem viveu 11 anos, quando experimentou algo sexualmente diferente. Seu parceiro agora era um homem mais ou menos da sua idade, que ela conheceu em um aplicativo de relacionamento. Ao fim de algumas visitas virtuais, os dois combinaram de se encontrar pessoalmente, e ela achou prudente informar que era deficiente física.
Ao nascer, Irlanda sofreu um trauma no parto que acarretou uma lesão medular alta nível C2 (incompleta). Isso comprometeu os movimentos de seus braços e pernas. "Graças a doze cirurgias e muita reabilitação, meu corpo recuperou parte do tônus muscular, a autonomia para andar e para fazer as atividades básicas do dia a dia", conta.
Diálogo com o corpo
Quando tinha 15 anos, Irlanda foi vítima de um acidente de automóvel que a fez voltar praticamente à estaca zero. "Eu me reconstruí graças a um diálogo com meu corpo, que acontece até hoje. Algumas vezes, não é diálogo, é grito. Houve momentos em que, no afã de ultrapassar meus limites e mostrar para as pessoas que eu era capaz, eu me colocava em risco, por exemplo, usando salto alto, ou tentando subir uma escada."
Hoje, conta ela, "costumo dizer que meu corpo é meu templo, o lugar em que eu habito, com janelas e rachaduras". Irlanda se sente relativamente privilegiada, uma vez que seus estímulos vaginais foram preservados, recuperou o controle do esfíncter e não apresenta dismorfia. "Quem me vê sentada, ou até em pé, só percebe que sou deficiente quando eu ando."
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"Meu corpo é meu templo, o lugar que eu habito, com janelas e rachaduras" (Foto: Pryscilla K/Uol)
Venda na maçaneta
Ao informar ao rapaz do aplicativo que era deficiente, Irlanda percebeu que "ele deu uma murchada". Ela não esmoreceu: "A gente já havia conversado bastante, então me senti à vontade para propor um jogo. Ele viria a minha casa, encontraria uma venda na maçaneta da porta da rua, colocaria nos olhos e passaria a noite com ela."
O rapaz topou. "Ofereci um jantar, dei comida na boca dele e, depois, fomos para o quarto. A transa foi bem legal para os dois. Tanto que repetimos mais umas quatro vezes." E então, na última, ele resolveu tirar a venda dos olhos. Não foi uma boa ideia. Sem estrutura para enfrentar a situação a olho nu, ele suspendeu as visitas a Irlanda. Os dois se reencontraram há pouco tempo, e ele voltou a visitá-la de quando em quando, sempre vendado.
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Ela já ouviu mais de uma vez: "Tão bonita, que pena" (Foto: Priscylla K/UOL)
Dor do perdão
A combinação de curiosidade e intrepidez levou Irlanda a muitos êxitos e decepções. Depois do marido e de diversas experiências com pessoas que conheceu nas mais diferentes ocasiões, em bares, no trânsito, supermercados, aeroportos, ela ficou noiva de um rapaz seis anos mais novo. Durou um ano. "Um dia, ele me pediu em casamento; na semana seguinte, terminou. Lembro-me dele de joelhos, beijando minhas pernas, chorando e pedindo perdão. Foi muito doloroso", conta.
Nascida em Limoeiro do Norte, cidade a 146 km de Fortaleza, Irlanda Maia, 46 anos, é a segunda de quatro irmãos. Na adolescência, sempre muito aguerrida, respondia às crueldades dos colegas na escola com munição pesada, o que eventualmente a estressava mais do que apaziguava. "Quando me chamavam de aleijada, ou me imitavam andando, eu batia com a bengala na perna da pessoa e dizia que da próxima vez iria quebrá-la. E que ela seria aleijada como eu!"
Até entender que a raiva não era sua aliada, mas um sentimento que a deixava ainda mais vulnerável, ela enfrentou o mundo com sangue nos olhos. Em determinado momento, na faculdade de psicologia da PUC de Brasília, tomou uma atitude radical ao encontrar pela enésima vez a vaga preferencial do estacionamento ocupada pelo carro de alguém que não era deficiente: "Estacionei atrás do carro que estava lá, levei a chave e avisei que, dali por diante, quem ocupasse a vaga sem ter direito ia esperar até eu sair.'
Naquele dia, o dono do outro carro esperou mais de duas horas. "Quando eu cheguei, ele disse: 'Além de aleijada, doida!"'
Tão bonita, que pena
Logo, Irlanda compreendeu que o bullying a assombraria por toda vida, e não seria razoável combatê-lo na base da bengalada. Tampouco se propôs a "resolvê-lo" para sempre. Hoje, acredita que a via para se sentir minimamente segura é, no limite do possível, conquistar a independência física e afetiva. O caminho é penoso: "Durante muito tempo, eu quis transformar o olhar dos outros, fazê-los me ver como uma pessoa bem resolvida; eu me obrigava a mostrar superação. Até que percebi que tinha virado refém disso."
Hoje, ela diz que não se força mais a provocar reações positivas: "Se alguém me diz: 'Você é tão bonita, que pena; poderia ser modelo se não tivesse deficiência', eu tanto posso rosnar, como não dar a mínima."
Para Irlanda, o olhar das mulheres para o homem deficiente costuma ser mais generoso do que o oposto. "Há umas que veem charme em um cadeirante, o que é mais difícil ocorrer da parte do homem em relação à mulher deficiente. Porém, se a gente não focar apenas a deficiência, vai ver que a mulher, deficiente ou não, é sempre mais generosa em relação ao homem — deficiente ou não."
Machismo internalizado
Contudo, da mesma forma que se mostram generosas em relação aos homens deficientes, as mulheres podem ser muito cruéis com as deficientes. Irlanda conta que, quando estava casada, chagavam a ela comentários indignados, como: "Ele arrumou uma mulher para tomar conta! Onde já se viu? Quem tem de tomar conta (do homem) é a mulher". Irlanda acredita que "é da nossa cultura, elas internalizam o machismo."
De acordo com ela, o reforço da autoestima — e haja estoicismo — pode garantir uma blindagem relativa. O difícil é conseguir isso, sob fogo cerrado. O preconceito é implacável e permanente. Irla conta que, em determinados momentos, o deficiente é instado a "perdoar" o outro, já que o outro "não sabe lidar com a situação". "Sempre que eu ia jantar com meu marido, o garçom perguntava a ele o que eu ia comer. A mesma coisa nas lojas. Muitas vezes, o atendente se sentia constrangido de se dirigir a uma deficiente, e por isso me ignorava, mesmo que a roupa ou o sapato fosse pra mim. E quem deveria compreendê-lo era eu".
Cadeirante tem pênis?
O TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) de Irlanda foi: "Representação social do homem cadeirante e sua sexualidade para universitários do Distrito Federal". Ela realizou a pesquisa com alunos de diversos cursos — farmácia, propaganda, administração e medicina. E por que fazer só com homens? "Eu tinha curiosidade de saber como a sociedade enxerga a deficiência neles. Vi que a masculinidade e a virilidade são muito cobradas. As pessoas querem saber se o cadeirante tem pênis, se fica duro; a pressão imposta aos homens de uma maneira geral vira motivo de especulação no caso do cadeirante. E isso, sem a menor cerimônia."
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A ausência de pênis não isenta as mulheres de virar alvo desse empirismo descarado. Irlanda, pessoalmente, diz que o eventual sentimento de "curiosidade" por parte de quem se aproxima dela é algo que a deixa intrigada. "Eu me sinto um camundongo de laboratório, alguém que só interessa em nível experimental. Acho que mereço mais."
Será que?
Por fim, a pergunta que não quer calar. Existe preconceito entre os próprios deficientes? Irlanda diz que nunca se restringiu a um grupo de deficientes, nem a nenhum outro. "Eu acho que isso me aprisionaria, reduziria meu conhecimento do ser humano. Todo mundo é diferente do outro, não só o deficiente."
Em sua experiência com esse grupo, ela observou uma polarização: "Alguns preferem se relacionar entre si porque se sentem identificados, compreendidos, parte de uma comunidade; mas há quem se sinta incomodado em enxergar no outro a sua própria deficiência, e o rejeite. É como se aquilo o lembrasse o tempo todo da pior parte de sua vida".
Um terceiro caso é o dos homens cadeirantes que, segundo Irlanda, dizem ter preferência por mulheres não-deficientes, porque no relacionamento com elas se sentem mais inseridos no mundo masculino. "As formas de reagir à deficiência são as mais variadas, e isso é um sinal de que todos nós deveríamos estar abertos para novas vivências."
Ferramenta exploratória
Ela diz que se relacionou com apenas dois deficientes. Conheceu ambos em clínicas de reabilitação física. O mais velho, por quem ela se apaixonou, era um cadeirante que sofria de uma doença degenerativa. "Ele tinha sido segurança de político, usava muito o físico para se impor, estava em um processo de aceitação da nova condição. Era um homem atraente, cavalheiro, tentava empurrar a cadeira dele junto com a minha e conversava muito comigo sobre como fazer para continuar a ser visto pela identidade dele, não pela deficiência." O relacionamento acabou se dissipando, porque o ex-segurança morava em outro estado.
O outro pretendente deficiente, mais jovem, era independente, reabilitado, contava com uma certa autonomia. De acordo com Irlanda, ele não tinha tido na vida nenhum tipo de envolvimento afetivo, nem pretendia. Queria apenas sexo. "Eu estava em outro momento, com a autoestima construída, não precisava me sujeitar àquilo. Não queria me ver como uma ferramenta exploratória."
"Todo mundo é diferente do outro, não só o deficiente" (Foto: Pryscilla K/Uol)
'De aleijado, basta eu'
Um tempo depois do contato com este mais jovem, os dois se encontraram, e ele contou que estava namorando uma moça que não era cadeirante. Disse uma frase que Irlanda nunca mais esqueceria: "De aleijado, já basta eu." "Fiquei chocada com a fala preconceituosa, estigmatizante. E não se trata de um caso isolado. Ouvi isso de forma direta ou dissimulada, de vários deficientes."
Embora procure respeitar não só as limitações físicas, mas psíquicas de todas as pessoas, até por força da profissão, Irlanda Maia não acha saudável para ninguém olhar o tempo todo para a parte do próprio corpo que considera imperfeita ou falha. Nesses casos, ela acredita que: "Quem muito vive na falta, na falta fica."
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.