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Paulo Sampaio

Promoter cria festa para 'ursas': gays grandes, peludos e afeminados

Paulo Sampaio

02/10/2019 04h00

Até aqui, a comunidade LGBTQIA+ associava o gay grande e peludo, conhecido como "urso", a um ser "rústico", "machão" e "destemido". Mas então o produtor de festas Rafael Maia, 31 anos, resolveu promover uma balada para derrubar esses estereótipos e prestigiar as "ursas" — o correspondente afeminado da espécie.

"A comunidade ursina é historicamente controversa no que diz respeito a aceitar o que é diferente da normatividade. Até pouco tempo, havia festas de ursos que não aceitavam ou dificultavam a entrada de mulheres. Viemos para quebrar isso", diz Rafa Maia, que mede 1,78m, pesa 98kg e se autodenomina "ursinho" .

"Quisemos fazer uma celebração específica para pessoas que não tem o corpo padrão e que gostam de se sentir livres para expressar seus desejos e vontades, como se montar de drag queen, usar maquiagem, brincar com cores e formatos nas roupas, cabelo etc. e usar tudo isso com muita extravagância e alegria". 

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Com 1,78 e 94 kg, o criador da festa para ursas, Rafael Maia, se define como "ursinho" (Foto: Arquivo Pessoal)

Quem é quem no zoo

Como quase sempre acontece nessas metáforas idealizadas, quem primeiro associou o animal urso ao gay grande e peludo foram os norte-americanos. No fim dos anos 1970, o jornalista George Mazzei escreveu um artigo para revista gay Advocate intitulado "Quem é quem no zoológico". Surgia o "bear".

Naquele tempo, quando a conceituação de identidade de gênero mal engatinhava, o principal alimento do urso "básico" era o "lenhador" (exemplar encorpado do animal, rude e corajoso, em geral reconhecido pela camisa quadriculada, o jeans desbotado e a bota reforçada).

Para todos os gostos

Com o tempo, a nomenclatura para designar os interessados em desenvolver romances com ursos se expandiu. Agora, havia os cub (filhotes); os chubby (barrigudinhos); o chaser ou hunter (caçadores muitas vezes não identificados fisicamente com a espécie, podendo ser franzinos e lisos); a lontra (peludos, mas não necessariamente gordos);  o coala (ursos loiros); panda (asiáticos); e polar (mais velhos, com pêlos brancos).

Existe uma controvérsia, dentro da própria comunidade, a respeito da definição de  urso gay. Alguns acreditam que ele tem de ser gordo (como o animal), outros o vêem como grande e musculoso (o animal idealizado) — mas todos concordam em relação a abundância de pêlos. Em São Paulo, o número de festas e bares dedicados a ursos cresceu exponencialmente na última década.

Úrsula, originalmente, é a ursa lésbica. Tem aparência masculinizada, está acima do peso e se veste de couro.

Inconvenientemente feliz

Não é de hoje que Rafael Maia persegue um ideal libertário. Conhecido no meio baladeiro underground por promover festas de sexo onde todos acabam nus, Maia criou em 2015 a "Kevin" (baseada nas tirinhas "Kevin & Friends", que retratam as "aventuras do menino inconvenientemente feliz"); depois a Z(o)NA (o "o"no meio da palavra é uma alusão ao ânus) e atualmente representa também a F4F, braço paulistano de uma festa promovida em Berlim por um brasileiro (o primeiro "F" é de "ficken", que em alemão significa foder; "4F" é a versão numérico-representativa da expressão em inglês "for fun").

"Somos todos plurais e livres, as pessoas se comportam da maneira que quiserem desde que respeitem quem está lá. Gordofobia, lesbofobia, racismo, homofobia, transfobia, machismo, misoginia não são tolerados de maneira nenhuma. E a pessoa que performar qualquer um desses insultos será posta pra fora do clube", diz Maia.

Rejeição gigante

Ele recebe para as festas no Club ZIGduplex, localizado no centro de São Paulo. A primeira "Úrsula", como foi batizada a festa das ursas, foi em setembro e reuniu 350 pessoas. A próxima será no dia 25 de outubro. Para a ursa Duda Dello Russo, nome artístico do assistente de estilo, DJ residente da Ursula e palestrante Eduardo de Oliveira Jr., 23 anos, "as afeminadas sofrem dentro da comunidade gay, por ela estar ligada a um sistema patriarcal, machista e misógino, que rejeita qualquer imagem que se assemelhe a mulher/feminino".

Duda diz que sempre foi "muito afeminado" e que quando começou a "explorar ainda mais esse lado", como drag queen, sentiu uma "rejeição gigante da comunidade".  "A 'Ursula' foi a primeira festa em que fui só de roupa íntima. Sabia que era um lugar seguro, e livre de julgamentos a respeito do meu corpo.

Duda Dello Russo, a DJ residente da Ursula, devidamente paramentada: "Aqui eu me sinto livre de julgamentos a respeito do meu corpo" (Foto: Arquivo Pessoal)

Ursos versus ursas

Para o maquiador e designer de moda Diego Bernardino, 24 anos, que encarna a drag queen Di Vina Kaskaria e toca na festa, "a proposta da Ursula é trazer um público que não se sente acolhido em festas típicas de ursos". "Como qualquer microcosmo, o meio ursino passou a reproduzir preconceitos sociais, como racismo, gordofobia, misoginia."

Diego conta que, no dia da primeira edição da Ursula, há um mês, ele esteve também em uma festa tradicional de ursos. "A recepção foi bem diferente. Enquanto na dos ursos eu percebi olhares de estranhamento, na Ursula eu me senti confortável na pele de uma drag queen ursa peluda e barbada", diz ele, que é casado há quatro anos.

O maquiador e DJ Diego Bernardino, que toca na Ursula como Di Vina Kaskaria, posa com um bife no olho: "Na Ursula eu me sinto confortável na pele de uma drag peluda e barbada" (Foto: Arquivo Pessoal)

A todos, Rafael Maia saúda com um "Woof!" (cumprimento ursino).

 

 

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.